segunda-feira, 30 de setembro de 2013

miniconto 6 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Código 1001



Fui até o décimo andar e pedi para falar com o Sr Ludovico, dono da fábrica. A secretária me disse que ele estava almoçando em sua sala, mas poderia me receber. Entrei, ele estava comendo um salmão com legumes, me sentei de frente para ele e disse:

_Eu me demito.

_Que?

_O senhor está surdo?! Eu me demito, porra!

_Eu entendi o que você disse, só queria entender o porquê depois de tantos anos de empresa...

_Quando eu entrei nesta sala, pensei: "eu ficaria muito puto se fosse esse peixe que morreu para alimentar um cara tão babaca como o meu chefe. Da minha parte, eu não daria nem a minha merda para alimentar o Sr Ludovico". Logo depois, me dei conta de que o senhor não come a minha carne, mas eu gasto os melhores anos da minha vida para que o senhor seja ainda mais rico. Eu dou o meu suor para que a empresa do senhor dê lucro. Eu sacrifico o tempo com os meus filhos, me arrisco nas máquinas perigosíssimas da sua fábrica para um salário de fome no final do mês!

_Compreendo. E o senhor acha que vai viver de que exatamente?

_Não sei. Ando pensando que talvez eu não precise de tudo isso para...

_Perfeitamente. Já entendi.

O Sr Ludovico me interrompeu, tirou o telefone do gancho, anunciou uma emergência código 1001 ao telefone e, antes que ele recolocasse o fone na base, um segurança invadiu sua sala, injetou uma droga no meu pescoço e então eu apaguei.

*

Acordei me sentindo desconfortável e percebi estar sentado em uma poltrona com pés e mãos atados. O segurança que havia me drogado se aproximou e começou a dar instruções:

_Demorou a acordar! O senhor assistirá a algumas cenas que serão projetadas nesta parede. Saiba que fingir-se de morto não vai adiantar, por isso instalarei nos seus olhos estes mecanismos que não lhe permitirão fechar os olhos.

Depois de colocados os equipamentos que mantinham meus olhos abertos, a projeção começou. Na primeira cena, vi meus filhos estudando no melhor colégio da cidade, em suas mãos a aprovação no vestibular mais concorrido do país. Logo, a cena cortou para uma praia paradisíaca. Tentava definir se o mar era verde ou azul quando me vi mergulhando entre peixes coloridos ao lado da minha esposa e dos meus filhos. Corta. Estamos em uma feira com os mais recentes lançamentos eletrônicos. São gadgets incríveis controlados pelo movimento dos olhos, pela voz... Eu e minha família olhamos tudo maravilhados. Corta. O carro do ano. Corta. O corretor anunciando uma oportunidade única no local onde sempre desejamos morar. Sauna, piscina, um quarto para cada filho. Corta.

*

O segurança me desatou, saí ainda tonto da sala e encontrei a secretária do Sr. Ludovico.

_Como vai? Ele deseja saber se o senhor quer mesmo se desligar da nossa empresa.

_Não, senhora. Peça desculpa a ele se eu o ofendi. Diga que não foi minha intenção, que perdi a cabeça.

_Perfeitamente. Tenha um bom dia de trabalho.

domingo, 29 de setembro de 2013


miniconto 5 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Bellissima






Quando minha mãe me arrastou pra dentro daquele estúdio, não havia lágrimas, não havia choro no meu rosto. Havia, no entanto, um doloroso nó na minha garganta. Eu tremia e mal respirava. Eu simplesmente não queria estar ali. Eu não queria estar ou ser vista naquela fila de outras mulheres como minha mãe, de outras meninas vestidas com enormes vestidos de saias de tule e renda, com penteados engenhosos como gigantescos bolos de casamento.

Eu tremia encostada à parede fria do estúdio, enquanto minha mãe retocava minha maquiagem e ajeitava com laquê o meu penteado elevando-se muitos centímetros acima da minha cabeça. Ela dizia que eu não devia olhar nos olhos daquelas garotas, ela as chamavas de ‘codorninhas’, dizia que, reforçado o meu batom, estaria proibido beber água ou comer qualquer coisa. Eu também teria uma única última oportunidade de ir ao banheiro e, depois, sem desfazer o penteado ou amassar o vestido, deveria ensaiar os passos da coreografia, afinar a garganta, repassar a maneira de postar-me no centro do palco e, simpaticamente, cumprimentar o diretor e a equipe de assistentes que o circundava.

Eu teria também que contar uma anedota, sorrir, embora o vestido fosse terrivelmente desconfortável, os pequenos grampos na base do penteado de numerosos pavimentos espetassem o meu couro cabeludo e o par de sapatos herdados de uma prima comprimisse os meus dedos, ferisse o alto dos meus calcanhares.

O teste era para o papel de uma menina enferma, que passaria quase todo o filme de olhos fechados, na maior parte do tempo morta. Mas minha mãe viera o caminho inteiro, no ônibus, depois no metrô, repetindo que, num teste, para um estúdio grande como aquele, somente saber fingir-se de morta não seria o suficiente. Minha mãe dizia que a escolha recairia sobre algo mais. Que a criança deveria ser bela, esbelta, bem cuidada, com cabelo, unhas e maquiagem feitos. Que a criança deveria ser capaz de provar, no átimo de um teste, ser dotada de múltiplos e raros talentos, que, “somente fingir-se de morto não vai adiantar!”, ela repetia essa frase virando-se pra mim, algo transtornada, algo enfurecida por depender da performance de alguém como eu, fraca, em quem ela nunca poderia um dia querer confiar.

Passava das cinco e meia da tarde quando chamaram o meu nome. O crachá imenso enganchava-se aos bordados do vestido, parte do meu cabelo havia despencado justamente na franja e o penteado como um todo pendia para o lado direito da minha cabeça. Minha mãe me empurrava e eu não queria subir a escadinha de acesso ao palco. O medo, o jejum, o pescoço tombado para o lado esquerdo, a fim de postergar o iminente desmoronamento do bolo de laquê e purpurina equilibrado sobre minha cabeça, comprimindo a minha carótida, tornou inevitável que eu, ao invés de demonstrar múltiplas habilidades e concorrer por aquele papel, desempenhasse ali mesmo, com embaraçosa simplicidade, o suplício de uma criança desacordada.

Socorreram-me mas não me deram o papel. Disseram para a minha mãe que a criança, para trabalhar no estúdio, não poderia ser feia. Fomos embora e, depois daquela tarde, minha mãe passou a levar minha irmã mais nova aos testes de elenco.

(imagem: foto promocional do filme ‘Bellissima’, de Luchino Visconti, 1951 -http://www.imdb.com/title/tt0043332/)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

miniconto 4 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"

Comer, Rezar e Guerrear




Abri os olhos lentamente como quem acorda de um sono profundo, porém nunca na vida me sentira tão refeito por sono algum. Uma sensação de saciedade, tranquilidade e bem estar que jamais experimentara. O ambiente me era estranho, as paredes eram altas e pareciam ser feitas de material sintético. Nelas, não se viam vigas, colunas, portas ou janelas. Com tons de cinza à medida que se erguiam, as paredes avançavam sobre mim em um raio continuo. A iluminação e a ventilação não partiam de um ponto especifico, mas forneciam temperatura e claridade agradável. Reinava no ambiente um silêncio absoluto e não existiam móveis além de macas, como a em que me encontrava deitado.

Girei a cabeça e reparei que não era o único no ambiente. Havia dezenas, talvez centenas a minha direita e outros tantos a minha esquerda, além de outra fileira idêntica a nossa colocada de maneira oposta, como se estivéssemos refletidos por um espelho gigante. Todos, como eu, estávamos deitados de costas com o olhar perdido para o teto, como se víssemos algo no infinito. Notei que os ocupantes das outras macas estavam carecas, passei a mão na cabeça e nada. Aliás, não só na cabeça. Não tínhamos pelo em parte alguma do corpo. Voltei a tocar a cabeça e senti algo diferente. Bem no topo do crânio havia uma saliência subcutânea, mas não incomodava. Pensei: “fingir-se de morto não vai adiantar!”, então dirigi-me à pessoa do lado: “você sabe onde estamos?”. O som da minha voz me soou horrível devido ao silêncio que reinava. Uma voz feminina serena e harmoniosa me veio através da tal protuberância do crânio e disse: “agora que despertou você será integrado à sociedade ideal”. Quando mentalizei o que seria a próxima pergunta, antes de articulá-la, a voz se antecipou e a respondeu prontamente. Criamos a partir dali uma nova forma de comunicação que dispensava a voz na qual meus questionamentos eram respondidos antes que eu terminasse de mentalizá-los e assim fiquei sabendo de tudo:

“Começou em uma determinada noite, uma faixa de mais ou menos 50 quilômetros que cortava a Europa de Leste a Oeste ficou às escuras. Porém, não era simplesmente falta de eletricidade. Toda forma de energia sumira e mesmo com as hidrelétricas, termoelétricas e usinas nucleares funcionando a todo vapor a energia simplesmente não chegava ao fim das linhas de transmissão. As baterias dos carros, as pilhas dos rádios e das lanternas se descarregaram mesmo antes de utilizadas. Um pandemônio se instalou no mundo com os países se acusando mutuamente e de repente não se podia contar com televisão, rádio, carros, metrô, elevador, iluminação pública e nada que dependesse de energia. Um grande incêndio foi causado e milhares de mortes ocorreram pela falta de energia nos hospitais e a queda dos aviões que se encontravam em pleno voo. Do dia para a noite, aquela região voltou à idade média e houve um êxodo de milhões e milhões de pessoas. Com as autoridades restabelecidas, ainda que precariamente, fora da faixa que permanecia às escuras, iniciaram-se as investigações. Tão estúpidas eram as hipóteses e soluções inventadas que resolvemos nos manifestar”.

“E quem são vocês?”, mentalizei. “Somos o que vocês costumam chamar de extraterrestre”. “E o que vocês querem da Terra?”. “Nada! Se pensássemos o universo como uma árvore, a terra seria um fruto estragado em que o homem seria o bicho que o destrói com sua ganância. Da terra, só nos interessaria a Amazônia, o Alasca, o Polo Norte e o Polo Sul, ou seja, os locais onde o homem ainda não se instalou”. “Mas nossa energia vocês quiseram!”. “Nem isso nós queremos, a energia de vocês é primitiva e danifica nossos equipamentos. Usamos a energia do sol que é abundante e não causa danos quando usada corretamente”. “E por que pegaram então?”. “Nossas naves são equipadas com dispositivos que sugam energia de toda e qualquer fonte e nos aproximamos da terra com este equipamento ativado por engano. Só vocês, ignorantes e prepotentes como são, investem tanto tempo nesse tipo de energia com tanto sol disponível. Pense nos danos que a inundação de uma hidrelétrica causa. Pense nos inconvenientes de uma usina nuclear ou a carvão”. “Vocês vão acabar com o Planeta Terra?”. “Não, vocês vão se autodestruir. Nós vamos apenas causar isso. Como? Vamos manter o equipamento ligado tirando toda energia da terra, assim não haverá comida suficiente, pois as máquinas agrícolas não funcionarão, não haverá moradia suficiente, pois os edifícios sem elevadores são inúteis. Então haverá guerras, fome e por fim canibalismo. Como você sabe, na menor dificuldade o homem pratica o canibalismo. Lembra do episodio nos Andes? O homem além de tudo é extremamente ignorante também no que diz respeito à alimentação, basta ver os índices de obesidade nas regiões ditas desenvolvidas. Vocês quando melhoram o poder aquisitivo simplesmente comem até morrer de infarto, aneurisma ou coisa que o valha”. “Como vocês acham que deveríamos agir de uma maneira geral? Quais foram nossos grandes erros?”. “Não há mais tempo para corrigir, pois o homem é egoísta e não pensa no bem comum. Vocês não pensam nas próximas gerações nem da própria família quanto mais na da humanidade. Se a humanidade empregasse o tempo que gasta comendo, guerreando e rezando em estudos não estaria nessa situação”. “E o que pretende com a gente aqui deitado?”. “Estamos desenvolvendo um estudo em que não usaremos mais corpo, nestas cápsulas implantadas no topo do crânio de vocês tem alimento e oxigênio para o funcionamento do cérebro até o fim dos seus dias, partimos do principio que tudo o que queremos na vida são emoções e emoções são provenientes de impulsos elétricos no cérebro e esta cápsula está programada com muito mais emoções que você jamais teria se continuasse com sua vidinha terrestre”.

E assim os corpos foram desligados das cabeças que continuaram ali com o olhar fixo no teto interagindo com os ETs por anos e anos dentro do galpão no meio do deserto com seu revestimento de painéis solares.


(imagem: http://eradourada2012.blogspot.com.br/2012/08/emmanuel-atraves-de-langa-04122009.html)
miniconto 3 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


CONVOCAÇÃO





Enquanto meus colegas saíam de sala, coronel Gonzaga gesticulou indicando que queria falar comigo depois e a sós. Mais tarde, ao me apresentar na sua sala, levantou-se, foi até o corredor, checou de um lado e do outro para certificar-se de que não havia ninguém, trancou a porta a chaves e só então desdobrou parte da folha que trazia impressa nas mãos onde se via o brasão da corporação e o título: “CONVOCAÇÃO”. Como qualquer aluno de ultimo período, me mostrei ansioso para por em prática tudo que aprendera durantes aqueles longos e entediantes meses de aulas teóricas e treinamentos infindáveis. Da gaveta sob a mesa sacou um envelope pardo e despejou sobre o tampo de madeira lustrada todo o seu conteúdo. Viam-se amontoadas ali dezenas de fotos do meu cotidiano nas quais eu era visto nas mais variadas situações. Havia também extratos da minha conta bancária, índices do meu aproveitamento nos mais diversos cursos que fizera no decorrer da minha vida na academia e todo tipo de informações pessoais.


Voltando-se para mim deu início ao discurso com a voz ainda a meio tom como quem teme estar sendo vigiado. “Você foi indicado para uma missão ultra secreta e, embora seu histórico o qualifique plenamente, foi determinante para a escolha o fato de não ter parentes na polícia e nem fora dela. Vejo aqui, porém um baixo rendimento no curso de tiro”. Mostrei-me repentinamente abatido como quem recebera uma ducha de água fria. Impassível, o coronel caminhava em círculos pela sala enquanto abanava o e-mail e continuou o discurso, “sua indicação veio do alto comando e prevê disponibilização imediata. Porém, recomendam, como era de se esperar, que seja submetido por mim a um curso intensivo de tiro prático, pois a missão além de secreta, segundo eles, envolve sérios riscos de confronto a tiros. Portanto nos encontraremos às 5 horas da manhã na baia 8 do estande de tiro prático com armas curtas para darmos início ao treinamento que deverá melhorar sua acuidade em alvos distantes até 20 metros e onde entraremos em maiores detalhes sobre a operação”.

Seguiram-se então uma infinidade de recomendações quanto ao sigilo que deveria ser mantido sobre o assunto, ameaças do que ocorreria comigo caso vazasse algo de qualquer forma que fosse e as orientações de praxe, como deixar uma mala arrumada para uma saída repentina, comentar com o porteiro en passant que eu estava prestes a fazer uma longa viagem para visitar um parente distante, suspender a entrega de jornais e revistas entre outras medidas destinadas a justificar meu sumiço sem despertar suspeitas. Após ser liberado pelo coronel, percorri o longo corredor que dava acesso às salas da chefia, desci a imensa escada de madeira entalhada que ligava o andar superior ao enorme hall de entrada da delegacia, cumprimentei o Freitas que dava plantão na guarita e caminhei pela calçada as três quadras que me levariam até o estacionamento onde deixara o carro sem me importar com a garoa que caía.

Quando cheguei ao estacionamento, atravessei a larga avenida que àquela hora encontrava-se com pouco movimento, entrei no bar ELEONORA onde já era conhecido, acenei ao Barbosa que com a velha toalha nos ombros veio me atender. Pedi uma bebida e me dirigi à mesa encostada na parede de onde eu poderia observar todo o movimento de entrada e saída da freguesia. Fiquei por ali cerca de 2 horas, levantei então e fui até o carro pegar minha capa, pois a garoa havia se tornado chuva ainda que fraca.

Enquanto fazia o caminho de volta até a delegacia, liguei para o Freitas na guarita que após me fazer jurar por todos os santos que nunca ninguém ficaria sabendo, permitiu minha entrada fora do meu horário sem registrar no livro de ocorrências. Já no hall, ao invés de me dirigir à minha sala como havia prometido, subi a grande escada de madeira e percorri o corredor das salas da chefia parando diante da sala do coronel que abri usando minha chave mixa e abri nas cortinas uma fresta virada para a guarita. Sem acender a luz, liguei o computador e com o olho na tela e os ouvidos em tudo que acontecia no corredor, passei a pesquisar as pastas que ali continham e não demorou encontrei o arquivo com o título: CONVOCAÇÃO.

Ao clicar para que a máquina exibisse seu conteúdo senti um frio percorrer a minha espinha, não pelas imagens dos arquivos, mas por sentir o cano gelado da Pistola 45 que o Freitas encostara na minha nuca. “Você se acha muito esperto, não é?”, perguntou enquanto pressionava ainda mais a arma contra a minha cabeça. Erguendo os braços, girei o corpo ficando de costas para o monitor enquanto providenciava uma desculpa esfarrapada. Mal comecei a falar, notei os olhos esbugalhados do Freitas para a tela e reparei que ele não ouvia nada do que dizia. Voltei então lentamente para o computador e vi o que o enojava: uma infinidade de fotos de sadomasoquismo envolvendo o coronel Gonzaga e crianças, inclusive com necrofilia.

Freitas que era pai de duas meninas lindas fez ânsia de vomito diante das cenas ali expostas, demostrando ter além da já conhecida pouca inteligência o estomago fraco. Após mover para o meu pendrive todos os arquivos excluindo assim do HD, fui até a mesa do coronel, abri a gaveta, peguei o envelope pardo com o meu dossiê e um outro azul lacrado que se encontrava embaixo dele, fechei a gaveta, desliguei tudo, limpei nossas digitais e saímos trancando a porta cuidadosamente para não deixar vestígios. De volta ao bar, instalado novamente na mesa rente a parede, abri e examinei o conteúdo do envelope azul, em seguida destruí as fotos onde eu aparecia fazendo sexo com as crianças enquanto aguardava meu colega terminar seu turno na guarita.

Passava da meia noite quando Freitas chegou, comecei a explicar os motivos da invasão ao escritório do coronel. Contei que fora convocado para um treinamento na manhã seguinte no qual a intenção do coronel seria livrar-se de mim simulando um acidente no treinamento de tiros e dias depois deflagrar um escândalo jogando sobre mim a culpa de toda aquela barbárie e para isso já contava com fotomontagens onde ao invés dele, eu apareceria nas cenas que ele vira no computador. Estando o coronel à frente das investigações e eu não tendo familiares para questionar nada e nem lutar pelos meus direitos, rapidamente daria por encerrado o caso que já rolava na corregedoria após denuncias de que um policial estaria envolvido nos casos de pedofilia que vinham sendo noticiados nos jornais locais. “Que safado!”, disse Freitas.

Com a invasão esclarecida passamos a planejar nossos próximos passos. Mostrei ao Freitas as fotos do coronel impressas que não se conteve e no auge da indignação se manifestou: “fingir-se de morto não vai adiantar, por mim invadíamos a casa do safado agora e dávamos fim nele”. Após convencê-lo a agir seguindo meus métodos e fazê-lo repetir inúmeras vezes seu papel no meu plano, seguimos cada um para sua casa.

Pouco antes das 5 horas da manhã, ao chegar ao estande de tiros já encontrei o coronel no boxe 8 praticando por puro prazer, pois sua sala era forrada de quadros com medalhas de campeonatos de tiros ganhos por ele em várias modalidades. Ao me ver, dispensou as formalidades das continências e enquanto recarregava a arma foi direto ao assunto. “Você foi uma das maiores promessas que passou por aqui nos últimos tempos”, disse o coronel, o tom da sua voz agora não soava nada amigável. “Fui, coronel?”, perguntei com ar de deboche”. “Sim!”, respondeu rispidamente. “Você será desmascarado! Sei tudo sobre você e suas façanhas com essas crianças inocentes, investiguei por conta própria para não enxovalhar o nome da jurisdição, tenho tudo documentado e chegou a hora de você prestar contas aos pais e mães dessas crianças que você molestou”. Após dar uma rápida olhada em volta para me certificar de que estávamos a sós, perguntei: “e como o senhor pretende me forçar a isso?”, mostrando discretamente a arma que carregava na cintura. Quase rindo disse o coronel: “ora rapaz, você teria que ser bem mais ágil com uma arma do que consta no seu histórico para sacar e me atingir se estivéssemos de igual para igual, quanto mais eu estando já com a minha nas mãos”.

Dei um passo para trás e levei a mão à cinta, não para sacar, pois sabia que não seria páreo para o coronel, e sim para fazer o gesto combinado com Freitas, este sim um exímio atirador que aguardava de longe para um tiro de snipe. Atingido na têmpora, o corpo do coronel se projetou no ar e caiu inerte a metros de distancia, já sem vida. Aproximei-me e tirei do seu bolso a falsa CONVOCAÇÃO que eu havia plantado em seu computador dias antes ao saber de suas investigações sobre as minhas atividades sexuais.

Após horas ajudando a equipe da perícia que levantava dados para tentar descobrir de onde poderia ter partido o tiro que atingira o coronel durante nosso treinamento, fui liberado para dar continuidade a minha vida, pois o caso seria tratado como vingança de alguém que acabara preso pelas ações do coronel linha dura.

Ao chegar ao estacionamento, já longe do local do ocorrido, meu amigo Freitas me aguardava consternado. Com tudo que eu passara, convidou-me para almoçar em sua casa, pois segundo ele nada melhor nesses momentos de crise do que companhia da família e por eu não ter a minha própria a família dele a partir dali seria a minha família. Tive que virar para o lado para que ele mesmo sendo burro como era não percebesse minha expressão e o brilho nos meus olhos ao lembrar das suas duas filhinhas lindas.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

miniconto 2 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Um ateu com medo de fantasma





Tati Bernardi tocou a campainha, o cliente abriu.


_ Ainda bem que você chegou. Entre por favor.

_Ui, que gostoso! Já me recebeu só de toalha.

Ela foi com a mão até a sua cintura, mas o cliente riu e disse:

_Não. Venha, sente-se aqui no sofá e vou explicar a situação. Aceita um drink, uma água?

Tati aceitou uma água e o cliente foi buscá-la. Ele entregou o copo à Tati, sentou-se ao seu lado e disse:

_Hoje tem sido um dia estranho. Cheguei à minha casa cansado após o trabalho, abri a geladeira e comi um brigadeiro que eu nem sabia existir. Meu filho, que mora com a mãe no interior e passou o fim de semana aqui, deve ter feito e deixado ali. Tirei uma carne do congelador para fazer mais tarde e fui tomar banho. Quando estava saindo do banheiro, uma sensação esmagadora tomou conta de mim. Em um segundo, eu era capaz de entender todo o universo, como se pudesse vê-lo diante dos meus olhos. Do nada antes do Big Bang ao grande nada para o qual caminhamos inexoravelmente. Isso tudo estava sendo muito pesado para mim. Eu me deitei no tapete da sala e fechei os olhos. Tive então a sensação de estar rodeado por monstros e seres malignos que vinham me pegar e senti muito medo de ficar sozinho. Eu precisava de alguém para conversar sobre aquela angústia, mas psicólogos não atendem a essa hora e, ainda que atendessem, seria mais barato chamar uma prostituta. Então entrei na internet e busquei o seu número.

_Uau. Esse brigadeiro do seu filho não devia estar puro.

O cliente olhava fixamente para ela. Já que ele não queria fazer sexo, apenas alguém que o escutasse, chamar um travesti era a opção mais barata. Porém, olhar para aquela pessoa sem um sexo definido o deixava ainda mais confuso. Mas, afinal, o que ele/ela tinha falado fazia sentido. O cliente pegou o celular e enviou uma mensagem para si mesmo: “não se esqueça de cortar a mesada de seu filho por alguns meses”. Depois, deitou no chão e voltou a falar:
_A minha existência na Terra nunca foi suave. Quando estava na faculdade, o colega que dividia o quarto comigo se matou. Fui eu que encontrei o corpo. Ele estava estirado no chão, muito sangue em volta. Aproximei e vi o sangue saindo pela boca e pelo nariz, os olhos sem vida. Desde então, eu não consigo mais ficar no escuro, eu fecho os olhos durante o banho para ensaboar meu cabelo e tenho a impressão de que ele está dentro do box me olhando, a três dedos do meu rosto. Cai algo de madrugada embaixo da cama, eu vou pegar e tenho a impressão que meus dedos vão voltar sujos de sangue. É ridículo, um ateu com medo de fantasma. Mas eu sei que ele sempre esteve me acompanhando para me lembrar de que esta vida não vale a pena, que no final a conta não fecha: é muito gasto para pouco retorno, é muita gente chata para pouca gente legal. É um trabalho de merda do qual no máximo eu posso sair para arrumar outro trabalho de merda.

O cliente fez uma pausa. Ele não percebeu, mas enquanto falava Tati observava todo o apartamento.

_Você se incomoda que eu fume?

_Não, fique à vontade.

Ela foi até a bolsa, pegou uma cigarrilha e a acendeu na varanda, onde começou a falar:

_Você pensa assim justamente por ser ateu. Deus nos vê como nós vemos os peixes em um aquário. Imagina se um peixe, ainda que seja o mais inteligente do mundo, viesse te explicar o sentido da vida. Você certamente acharia aquele peixe prepotente, já que ele tentaria criar uma teoria sem nunca ter olhado um telescópio, sem saber onde fica a África, a Amazônia, sem conhecer todo o sistema solar... É assim que Deus pensa quando nos vê buscando o sentido da vida e tentando explicar o universo através do nosso cérebro usando apenas nossa linguagem e nossos números, todos completamente limitados: como a gente veria um peixinho dourado tentando resolver uma questão de álgebra.

_O que você diz faz um sentido muito grande, mas talvez eu só pense assim porque estar chapado me deixou mais burro.

_Eu penso assim porque eu já vi muito desta vida. Quando eu tinha 13 anos comecei a me vestir de mulher. Meu pai me deu uma surra, me colocou para fora de casa e disse: “vá viver a sua vida, mas saiba que desse jeito você está fudido, ou vai ser cabeleireiro ou vai ser puta”. Eu não sabia cortar cabelo, então tive que escolher a última opção. Não que eu soubesse ser puta, mas isso eu encontrei muitos homens para me ensinar. Vou te falar, a maneira como você encontrou o seu colega é fichinha perto do que eu já vi durante estes anos na rua. E é por isso que eu espero ansiosamente o dia em que Deus ou algum enviado tenha uma explicação muito iluminada para esta bosta de vida.

Ela deu um trago profundo e exalou a fumaça para dentro da sala, onde ficou parada como uma névoa. Ela foi até a bolsa e continuou sua história:

_Até o dia em que um cara me matou. Um grande filho da puta. Mas ele matou Tati Bernardi uma noite e na manhã seguinte nasceu Tati Tresoitão.

Ela tirou uma pistola da bolsa.

_Você deve estar achando curioso eu ter esse nome e usar uma pistola, né? Eu realmente usei revólver calibre 38 um tempo, mas perdi a arma durante um assalto. Tudo bem, digamos que o calibre a que tresoitão se refere não é o da minha arma.

Ela riu sozinha, apontou a arma para seu cliente no chão e disse:

_Você já deve ter lido nos jornais sobre mim e sabe que fingir-se de morto não vai adiantar.

Mas ele já estava dormindo há algum tempo, nem viu o assalto ser anunciado. Tati então se ajoelhou, colocou a pistola dentro da boca de seu cliente e disparou. Ela se levantou, viu o sangue começar a jorrar da sua boca e riu da situação: ele terminou justamente como o amigo que tanto o impressionara.

Ela levou todos os objetos de valor que encontrou na casa até o porta-malas do carro da vítima na garagem. Ao contrário dele, a imagem de uma pessoa morta com um tiro na boca não a perturbou e antes de atravessar o portão com seu novo carro, ela já não se lembrava mais do último olhar aterrorizado de seu cliente.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013


Décima Rodada, miniconto 1


O milagre






Quando o celular tocou e vi as duas letras no mostrador - “VÓ”- intuí que tinha chumbo grosso a caminho. Desde o último encontro, dois anos antes, quando trocamos farpas e acusações, ela me chamando de playboyzinho irresponsável, eu retrucando com megera controladora, não trocávamos palavra. De qualquer forma, atendi imediatamente.

- Helinho, é sua avó, tudo bem?

- Tudo bem, vó, e a senhora?

- Onde você está agora?

- Estamos em Belo Horizonte, temos um show programado para sábado.

- Pegue um avião e venha me ver amanhã sem falta... Eu pago as despesas.

- Vó, pelo amor de Deus...

- O assunto vale sete milhões de reais, se você não vier, decidirei sozinha.

- Tá bem, eu vou.

Assim que desliguei o celular, fiquei matutando sobre o que poderia valer R$ 7 milhões, mas nada me ocorreu. Os imóveis e o negócio de fabricação e comércio de móveis deixados pelo meu avô certamente valiam mais que isso e cada um individualmente valia bem menos. Não adianta encafifar com isso, saberei amanhã – pensei com meus botões.

*

Eram aproximadamente onze da manhã quando me anunciei ao porteiro.

- Bom dia, sou neto de Dona Esmeralda da cobertura, ela está me esperando.

- Tudo bem, ela me avisou. Só que ela não mora mais na cobertura, está no 101.

Aquela informação me deixou ainda mais ressabiado. Vovó adorava morar na cobertura, onde mantinha um verdadeiro jardim suspenso e passava horas cuidando de suas plantas e até mesmo conversando com elas. Subi pelas escadas e quando cheguei ao apartamento e a porta da sala se encontrava entreaberta. Assim que entrei, minha avó apareceu, caminhou em minha direção e deu-me um beijo acompanhado de um abraço afetuoso.

- Vamos para o escritório – disse de forma direta, como era seu estilo.

Assim que entramos no escritório, ela sentou-se numa cadeira atrás da mesa e indicou-me uma das duas poltronas à sua frente. A outra poltrona encontrava-se entulhada de pastas e envelopes.

- Filho, faz um ano que descobri que tenho câncer no estômago.

- Meu Deus, Vó, que coisa terrível...

- E tem mais, os médicos acham que viverei somente mais um ano. Portanto, dentro de um ano você seria dono disto tudo, se estivesse à frente dos negócios, mas você resolveu ser pop star...

- Vó, não vamos começar tudo de novo...

- Claro que não! Você está vendo aquelas pastas marrons sobre a poltrona? São os contratos de venda de sete apartamentos deste prédio, da cobertura, mais a venda do sítio de Teresópolis e da casa de Mangaratiba.

- A senhora está vendendo isso tudo?

- Não, já vendi. O dinheiro encontra-se aplicado em papéis de renda fixa de grandes bancos. São os sete milhões que lhe falei e que pretendo doar à caridade caso você não assuma os negócios de seu avô que, aliás, não vão bem por falta de direção competente.

- Isso não é uma negociação, é uma imposição!

- Chame do que quiser! O passo seguinte à doação será a venda deste apartamento e da loja, seguida de nova doação do dinheiro apurado.

- Isto é um absurdo!

- Outra coisa, nem pensar em interdição judicial. Aquele envelope azul contém uma declaração de uma junta médica atestando minha plena sanidade mental.

- Puxa, vó, eu não faria isso...

- Também acho que não. Mas, como diz a propaganda do banco, vai que...

- Eu não posso abandonar a banda assim...

- Pode sim. O que não vai faltar é músico desempregado para entrar no seu lugar!

- As minhas roupas...

- As suas roupas de lá não têm serventia aqui!

- Mas Vó, eu preciso pelo menos...

- Helinho, eu te amo demais, mas não vou permitir que você coloque o patrimônio de seu avô naquela banda medíocre. Se é para gastar o dinheiro, eu mesma gasto. É pegar ou largar, fingir-se de morto não vai adiantar.

Meus argumentos estavam sendo massacrados pela objetividade de minha avó, mas no fundo, eu estava gostando. Ela havia criado uma saída honrosa para mim, eu poderia voltar para casa sem reconhecer o erro de oito anos atrás, quando atingi a maioridade e abandonei minha avó, a loja e os estudos para correr atrás de um sonho que hoje eu sabia impossível.

- Quando eu começo?

- Agora. O quarto do meio é seu. Ah, mais uma coisa, use mangas compridas, essas tatuagens recomendam muito mal...

*

Dez anos se passaram e minha vida mudou completamente, encontrei minha cara metade, tenho um casal de filhos e o negócio de móveis vai muito bem. Estamos em torno de uma mesa toda enfeitada com doces e bolo de aniversário, cantando o “parabéns a você” em homenagem aos 85 anos de minha avó em sua nova casa de campo em Petrópolis, onde ela leva uma vida tranquila junto às plantas que tanto ama.

*

E pensar que tudo começou com o aparecimento de um câncer de estômago descoberto há onze anos e que foi curado, segundo minha avó, graças à intervenção divina de Santa Terezinha.

Será?...

>> ESCREVA O SEU MINICONTO <<



Declaramos aberta a Décima Rodada OMICO de minicontos! 

Por votação, com 5 dos 11 votos apurados, a frase escolhida foi "Fingir-se de morto não vai adiantar" - extraída do  vídeo “A sombra de Ai Weiwei”, da Tv Folha.

Durante esta rodada, a OMICO completa cinco meses de vida. De abril até agora, o macaquinho mais amado da internet comandou protestos de norte a sul do Brasil (alguns dizem que ele foi visto até no Egito), revelou muitos talentos ocultos, publicou minicontos insólitos e conquistou fama ao receber depoimentos espontâneos dos seus 'curtidores'. Sem esquecer das experiências de escrita coletiva e das dicas para aqueles que sonham em ser escritores.

Para celebrar todos esses acontecimentos OMICO vai promover uma rodada premiada. Como assim? O vencedor da décima rodada de minicontos vai ganhar 1 exemplar do livro "Diário da queda", de Michel Laub

Para concorrer basta escrever seu miniconto e enviar para OMICO obedecendo as regras do regulamento que serão informadas assim que a décima rodada foi aberta. 

Para participar é bem fácil: cada um escreve o seu miniconto e depois envia por mensagem para a fanpage da OMICO ou através do "Fale com OMICO" aqui no Blog ->

Aos autores mais reservados informamos que é possível manter o anonimato mesmo após o final da Rodada! Basta, para isso, que deixem claro esse desejo no momento da inscrição de seus minicontos.

As regras da Décima Rodada são:

-> O miniconto deve conter obrigatoriamente a frase "Fingir-se de morto não vai adiantar", na íntegra e sem alterações;

-> Todos os minicontos devem ter título;
-> Não há extensão obrigatória para o miniconto - pode ter quantas linhas você quiser (embora a OMICO recomende que os minicontos tenham em torno de 500 palavras, já que muita gente lê o material publicado na página por meio de celular);
-> Mande uma sugestão de foto ou imagem para ilustrar o seu miniconto – sem se esquecer de citar a autoria ou fonte da ilustração;
-> Cada autor pode inscrever quantos minicontos quiser;
-> Não existe seleção. Todos os minicontos inscritos participarão da rodada e serão submetidos à votação dos leitores;
-> Os minicontos devem ser submetidos até domingo (dia 29/09).

Ao final, como é tradicional nas Rodadas OMICO, organizaremos uma enquete, aberta ao público, na qual todos os minicontos inscritos participam.

Assim, com ampla participação de quem curtiu a fanpage da OMICO, conhecermos o vencedor da Rodada!

Vamos, não desanime! Dê asas ao escritor que existe dentro de você. Participe!!

Organização OMICO


(imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgrUpod_XskX3kL_kVZuLnuNoxMjbV3T9mkxPdSbIt__SwVgChDWJxh08ZhEcI-QrQA6kOMhqygDGf8taZ9QiT5APv8dZ95BsQmZg4ZwGv_Y2ctxVvFUB5jVhTlI5juXuaI5hV1MtI6xv4/s1600/cachorro+morto.jpg)


Caros,


É com enorme satisfação que a ‘OMICO – Oficina de Minicontos’ anuncia o resultado final da Nona Rodada de Minicontos (frase obrigatória: "Se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais")! Como sempre, a votação foi emocionante e disputada voto a voto.

O vencedor da rodada, com 5 dos 14 votos apurados, foi... MINICONTO 2 – "Foda-se-me-nos"

Parabenizamos o autor do miniconto vencedor por sua vitória e principalmente pela qualidade de seu trabalho! 

Agradecemos ao vencedor e a todos os demais participantes (cujos trabalhos não deixaram nada a dever em criatividade e qualidade) pelo empenho e inscrição de seus trabalhos na rodada.

Convidamos, além disso, todos os participantes, minicontista vencedor incluído, para, se assim desejarem, revelar neste ‘post’, seus nomes e o título dos contos que inscreveram na competição.

Em breve mais informações sobre a próxima rodada.


domingo, 22 de setembro de 2013

Nona rodada, miniconto 7


De braços abertos, mas sem proteger ninguém





Vocês me veem. Eu vejo vocês. Vocês me fazem um pedido. Eu sou uma estátua de concreto, não posso atender.

Criado em uma das favelas que vejo daqui, ele trabalhava desde que se entende por gente com o que tinha. Foi engraxate, flanelinha, mas o que ele gostava mesmo era de pescar. Até que alguém um dia disse a ele que somente através da escola e da educação ele conseguiria ser um homem de bem. Então, começou a freqüentar a escola durante a noite, mas ele chegava lá tão cansado que não conseguia assistir às aulas acordado.

Até o dia em que a professora começou a explicar sobre o holocausto e passou um filme que ele até achou interessante, mas era em preto e branco e tinha algumas horas de duração, então ele não conseguiu ficar acordado nem meia hora após os créditos iniciais. Ao final, a professora perguntou ironicamente o que ele achou da história. Ele disse que tinha gostado e que a situação das pessoas no filme era parecida com a dele. A professora pediu para ele explicar. Ele disse que uma época teve que morar na rua. Ele estava com frio, com fome, mas as pessoas olhavam para ele e não tinham vontade de ajudá-lo, só medo que ele lhes roubasse a carteira. Ele explicou que todos sempre acharam que pessoas como ele, “preto e favelado”, eram uma ameaça e o governo então mata essas pessoas com o dinheiro do povo. A professora disse que ele não entendeu nada, que o filme era sobre judeus e ele saiu achando que a professora é quem não entendeu nada.

Indo para casa, ele conheceu uma garota mais velha, linda e que já tinha uma moto. Às vezes, eles iam juntos para a praia e ficavam namorando deitados na areia olhando para mim. Ele me agradecia, não entendia como uma garota tão bonita que tinha até uma moto deu bola para ele que muitas vezes não tinha dinheiro nem para pegar ônibus. De nada, filho, mas eu não tive nada com isso. 

Foi quando ele percebeu que a escola iria demorar muito tempo para transformá-lo em um homem de bem, quando ele tinha pressa de casar com a garota da moto e passar a vida inteira andando na garupa dela. Melhor: ele resolveu comprar a própria moto, levar aquela garota a todos os lugares, dar a ela tudo de melhor. Conseguiu uma arma com os traficantes da favela que ele morava, foi para a mesma praia onde tinha namorado e seu caminho cruzou com o de dois policiais de ronda ali e ele foi preso.

No dia seguinte, vi a garota cruzando a cidade na sua moto. Ela parou em um sinal, levantou a viseira do capacete e olhou para mim, como se pedindo um conselho. Gostaria de dizer que se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais. Existem tantos lugares no mundo para onde eu gostaria de ir, porém eu sou obrigado a ficar aqui, na mesma posição embaixo de chuva ou sol. Eu não pude dizer nada e apenas a olhei de volta com a minha expressão congelada. Ela seguiu em frente, vendeu a moto e com o dinheiro pagou a fiança do rapaz por quem já estava apaixonada. Na saída, avisou a ele que se algum dia essa história se repetisse ele nunca mais a veria. Nos anos seguintes, houve época em que eles passaram fome, houve meses em que comeram apenas pé de galinha que ele conseguia na xepa da feira, mas ele nunca mais cometeu nenhum ato criminoso.

Olhando daqui, eu acredito que não exista nada mais inconseqüente do que se apaixonar. Aliás, existe: ter filhos. Daqui, eu vejo vocês acordados de madrugada cuidando dessas crianças, vejo vocês desesperados por não terem dinheiro para sustentá-las, vejo vocês preocupados com resfriado, cólera, caxumba, sarampo, meningite... Até o filho crescer e só faltar bater na casa de vocês. Alguns até isso fazem. Mas eu devo pensar assim porque o meu coração é feito de pedra sabão já que eles se casaram, tiveram três filhos e mudaram para um barraco na mesma favela com um único cômodo 9 vezes menor que o tamanho da minha mão. 

Anos depois, quando ele estava conseguindo se firmar como ajudante de pedreiro, saiu de casa fazendo as contas e viu que em breve conseguiria comprar a moto que sempre quis. Na birosca, passava um jogo e ele parou para saber o resultado. Foi quando encontrou um policial, o Cara de Macaco. Daqui de cima, eu já vi o Cara de Macaco fazer cada coisa e, para poupá-los dos detalhes, eu direi apenas que, se eu pudesse, eu o esmagaria com cada uma das minhas toneladas de concreto.

O Cara de Macaco o mandou entrar no carro. Ele discutiu, disse que já estava indo para casa, mostrou os documentos. Mas o Cara de Macaco estava participando de alguma operação que lhe conferia ainda mais poderes para fazer o que quisesse e, como já não gostava dele, obrigou que ele entrasse no carro. Ele entrou no carro da polícia e olhou para mim. Eu olhei para ele e me lembrei do filme que a professora passou muitos anos antes. Eu concordava com ele: a professora é que não entendeu nada.

O carro disparou e eu nunca mais o vi. Eu sou uma estátua, não posso sair de onde estou e ir procurá-lo. Vocês podem se mexer, possuem cães farejadores e pás para cavar, mas não parecem ter interesse em participar da busca. Às vezes, eu acho que o coração de vocês também é de pedra sabão.

(Nota do autor: título retirado da música "Um Trem para as Estrelas" do Cazuza, "Estranho o teu Cristo, Rio / Que olha tão longe, além / Com os braços sempre abertos / Mas sem proteger ninguém")

(imagem: http://www.casapark.com.br/referencia-galeria-de-arte-expoe-fotografias-gravuras-e-desenhos-com-grandes-nomes-da-arte-contemporanea-brasileira/)
Nona rodada, miniconto 6


Moto-contínuo



Sei que muita gente diz “se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais". 

Ocorre que a vida, se repararmos bem, é, na verdade, um extraordinário globo da morte. De onde, portanto, desejar, fazer por onde ou simplesmente acelerar jamais significou sair. De tal maneira que possuir sob si uma motocicleta jamais significará liberdade. Porque eu nunca, aliás, reivindiquei pra mim uma semelhante motocicleta. ‘Essa moto’, como eles dizem, são minhas circunstâncias. Quando dei por mim, já estava montada nela, obrigada a domá-la sem que jamais me houvessem ensinado a pilotar, sem que me houvessem trazido um capacete e outros itens de segurança. Sem que eu jamais houvesse reivindicado uma motocicleta como meio, como forma ou transporte, uma motocicleta estranha que me obriga girar, girar, girar, sem jamais verdadeiramente permitir sair do sempre mesmo lugar, traçar para si e para a própria vida um objetivo. 

Sobre ‘essa moto’, sob minhas circunstâncias, manter a velocidade é preciso. Ainda que no globo e na vida não se tenha pra onde ir, ainda que se esteja sempre parado, estagnado sob a lona abafadiça do circo, enjaulado no perpétuo circular de um globo de quase-morte. Um globo rangente, obsoleto, por que quase ninguém mais se interessa ou pagaria um ingresso. 

No globo é imperativo manter contínua a velocidade. 

Interromper-se no globo, nausear-se, entediar-se ou simplesmente não mais poder significa despencar onde não há rede de proteção, a motocicleta indomável tombando estridente sobre nosso tórax, membros e nossa cabeça. Significa o risco abjeto de levar conosco outros globo-motociclistas, homens e mulheres que nos odiarão em virtude do acidente a que foram por nossa culpa e erro expostos, desejando-nos punição, vexame e degredo aguilhoados ao centro da estrutura de ferro sob a lona enegrecida do circo.

Portanto, àqueles que me criticam, que se incomodam com o ronco do escapamento, que me responsabilizam ao sufocar com a fumaça de combustível queimado, que se impacientam com a perpétua repetição da sempre mesmíssima manobra, por favor, que uma única coisa reste finalmente clara: aquilo que, pra quem vê de fora, aparenta injustificado desperdício de oportunidade, pra mim, presa às minhas próprias desgraçadas circunstâncias, é simplesmente calvário, é condenação à sempre mesma insuportável repetição.