domingo, 29 de setembro de 2013


miniconto 5 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Bellissima






Quando minha mãe me arrastou pra dentro daquele estúdio, não havia lágrimas, não havia choro no meu rosto. Havia, no entanto, um doloroso nó na minha garganta. Eu tremia e mal respirava. Eu simplesmente não queria estar ali. Eu não queria estar ou ser vista naquela fila de outras mulheres como minha mãe, de outras meninas vestidas com enormes vestidos de saias de tule e renda, com penteados engenhosos como gigantescos bolos de casamento.

Eu tremia encostada à parede fria do estúdio, enquanto minha mãe retocava minha maquiagem e ajeitava com laquê o meu penteado elevando-se muitos centímetros acima da minha cabeça. Ela dizia que eu não devia olhar nos olhos daquelas garotas, ela as chamavas de ‘codorninhas’, dizia que, reforçado o meu batom, estaria proibido beber água ou comer qualquer coisa. Eu também teria uma única última oportunidade de ir ao banheiro e, depois, sem desfazer o penteado ou amassar o vestido, deveria ensaiar os passos da coreografia, afinar a garganta, repassar a maneira de postar-me no centro do palco e, simpaticamente, cumprimentar o diretor e a equipe de assistentes que o circundava.

Eu teria também que contar uma anedota, sorrir, embora o vestido fosse terrivelmente desconfortável, os pequenos grampos na base do penteado de numerosos pavimentos espetassem o meu couro cabeludo e o par de sapatos herdados de uma prima comprimisse os meus dedos, ferisse o alto dos meus calcanhares.

O teste era para o papel de uma menina enferma, que passaria quase todo o filme de olhos fechados, na maior parte do tempo morta. Mas minha mãe viera o caminho inteiro, no ônibus, depois no metrô, repetindo que, num teste, para um estúdio grande como aquele, somente saber fingir-se de morta não seria o suficiente. Minha mãe dizia que a escolha recairia sobre algo mais. Que a criança deveria ser bela, esbelta, bem cuidada, com cabelo, unhas e maquiagem feitos. Que a criança deveria ser capaz de provar, no átimo de um teste, ser dotada de múltiplos e raros talentos, que, “somente fingir-se de morto não vai adiantar!”, ela repetia essa frase virando-se pra mim, algo transtornada, algo enfurecida por depender da performance de alguém como eu, fraca, em quem ela nunca poderia um dia querer confiar.

Passava das cinco e meia da tarde quando chamaram o meu nome. O crachá imenso enganchava-se aos bordados do vestido, parte do meu cabelo havia despencado justamente na franja e o penteado como um todo pendia para o lado direito da minha cabeça. Minha mãe me empurrava e eu não queria subir a escadinha de acesso ao palco. O medo, o jejum, o pescoço tombado para o lado esquerdo, a fim de postergar o iminente desmoronamento do bolo de laquê e purpurina equilibrado sobre minha cabeça, comprimindo a minha carótida, tornou inevitável que eu, ao invés de demonstrar múltiplas habilidades e concorrer por aquele papel, desempenhasse ali mesmo, com embaraçosa simplicidade, o suplício de uma criança desacordada.

Socorreram-me mas não me deram o papel. Disseram para a minha mãe que a criança, para trabalhar no estúdio, não poderia ser feia. Fomos embora e, depois daquela tarde, minha mãe passou a levar minha irmã mais nova aos testes de elenco.

(imagem: foto promocional do filme ‘Bellissima’, de Luchino Visconti, 1951 -http://www.imdb.com/title/tt0043332/)

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