sexta-feira, 27 de setembro de 2013

miniconto 4 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"

Comer, Rezar e Guerrear




Abri os olhos lentamente como quem acorda de um sono profundo, porém nunca na vida me sentira tão refeito por sono algum. Uma sensação de saciedade, tranquilidade e bem estar que jamais experimentara. O ambiente me era estranho, as paredes eram altas e pareciam ser feitas de material sintético. Nelas, não se viam vigas, colunas, portas ou janelas. Com tons de cinza à medida que se erguiam, as paredes avançavam sobre mim em um raio continuo. A iluminação e a ventilação não partiam de um ponto especifico, mas forneciam temperatura e claridade agradável. Reinava no ambiente um silêncio absoluto e não existiam móveis além de macas, como a em que me encontrava deitado.

Girei a cabeça e reparei que não era o único no ambiente. Havia dezenas, talvez centenas a minha direita e outros tantos a minha esquerda, além de outra fileira idêntica a nossa colocada de maneira oposta, como se estivéssemos refletidos por um espelho gigante. Todos, como eu, estávamos deitados de costas com o olhar perdido para o teto, como se víssemos algo no infinito. Notei que os ocupantes das outras macas estavam carecas, passei a mão na cabeça e nada. Aliás, não só na cabeça. Não tínhamos pelo em parte alguma do corpo. Voltei a tocar a cabeça e senti algo diferente. Bem no topo do crânio havia uma saliência subcutânea, mas não incomodava. Pensei: “fingir-se de morto não vai adiantar!”, então dirigi-me à pessoa do lado: “você sabe onde estamos?”. O som da minha voz me soou horrível devido ao silêncio que reinava. Uma voz feminina serena e harmoniosa me veio através da tal protuberância do crânio e disse: “agora que despertou você será integrado à sociedade ideal”. Quando mentalizei o que seria a próxima pergunta, antes de articulá-la, a voz se antecipou e a respondeu prontamente. Criamos a partir dali uma nova forma de comunicação que dispensava a voz na qual meus questionamentos eram respondidos antes que eu terminasse de mentalizá-los e assim fiquei sabendo de tudo:

“Começou em uma determinada noite, uma faixa de mais ou menos 50 quilômetros que cortava a Europa de Leste a Oeste ficou às escuras. Porém, não era simplesmente falta de eletricidade. Toda forma de energia sumira e mesmo com as hidrelétricas, termoelétricas e usinas nucleares funcionando a todo vapor a energia simplesmente não chegava ao fim das linhas de transmissão. As baterias dos carros, as pilhas dos rádios e das lanternas se descarregaram mesmo antes de utilizadas. Um pandemônio se instalou no mundo com os países se acusando mutuamente e de repente não se podia contar com televisão, rádio, carros, metrô, elevador, iluminação pública e nada que dependesse de energia. Um grande incêndio foi causado e milhares de mortes ocorreram pela falta de energia nos hospitais e a queda dos aviões que se encontravam em pleno voo. Do dia para a noite, aquela região voltou à idade média e houve um êxodo de milhões e milhões de pessoas. Com as autoridades restabelecidas, ainda que precariamente, fora da faixa que permanecia às escuras, iniciaram-se as investigações. Tão estúpidas eram as hipóteses e soluções inventadas que resolvemos nos manifestar”.

“E quem são vocês?”, mentalizei. “Somos o que vocês costumam chamar de extraterrestre”. “E o que vocês querem da Terra?”. “Nada! Se pensássemos o universo como uma árvore, a terra seria um fruto estragado em que o homem seria o bicho que o destrói com sua ganância. Da terra, só nos interessaria a Amazônia, o Alasca, o Polo Norte e o Polo Sul, ou seja, os locais onde o homem ainda não se instalou”. “Mas nossa energia vocês quiseram!”. “Nem isso nós queremos, a energia de vocês é primitiva e danifica nossos equipamentos. Usamos a energia do sol que é abundante e não causa danos quando usada corretamente”. “E por que pegaram então?”. “Nossas naves são equipadas com dispositivos que sugam energia de toda e qualquer fonte e nos aproximamos da terra com este equipamento ativado por engano. Só vocês, ignorantes e prepotentes como são, investem tanto tempo nesse tipo de energia com tanto sol disponível. Pense nos danos que a inundação de uma hidrelétrica causa. Pense nos inconvenientes de uma usina nuclear ou a carvão”. “Vocês vão acabar com o Planeta Terra?”. “Não, vocês vão se autodestruir. Nós vamos apenas causar isso. Como? Vamos manter o equipamento ligado tirando toda energia da terra, assim não haverá comida suficiente, pois as máquinas agrícolas não funcionarão, não haverá moradia suficiente, pois os edifícios sem elevadores são inúteis. Então haverá guerras, fome e por fim canibalismo. Como você sabe, na menor dificuldade o homem pratica o canibalismo. Lembra do episodio nos Andes? O homem além de tudo é extremamente ignorante também no que diz respeito à alimentação, basta ver os índices de obesidade nas regiões ditas desenvolvidas. Vocês quando melhoram o poder aquisitivo simplesmente comem até morrer de infarto, aneurisma ou coisa que o valha”. “Como vocês acham que deveríamos agir de uma maneira geral? Quais foram nossos grandes erros?”. “Não há mais tempo para corrigir, pois o homem é egoísta e não pensa no bem comum. Vocês não pensam nas próximas gerações nem da própria família quanto mais na da humanidade. Se a humanidade empregasse o tempo que gasta comendo, guerreando e rezando em estudos não estaria nessa situação”. “E o que pretende com a gente aqui deitado?”. “Estamos desenvolvendo um estudo em que não usaremos mais corpo, nestas cápsulas implantadas no topo do crânio de vocês tem alimento e oxigênio para o funcionamento do cérebro até o fim dos seus dias, partimos do principio que tudo o que queremos na vida são emoções e emoções são provenientes de impulsos elétricos no cérebro e esta cápsula está programada com muito mais emoções que você jamais teria se continuasse com sua vidinha terrestre”.

E assim os corpos foram desligados das cabeças que continuaram ali com o olhar fixo no teto interagindo com os ETs por anos e anos dentro do galpão no meio do deserto com seu revestimento de painéis solares.


(imagem: http://eradourada2012.blogspot.com.br/2012/08/emmanuel-atraves-de-langa-04122009.html)

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