terça-feira, 24 de setembro de 2013

miniconto 2 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Um ateu com medo de fantasma





Tati Bernardi tocou a campainha, o cliente abriu.


_ Ainda bem que você chegou. Entre por favor.

_Ui, que gostoso! Já me recebeu só de toalha.

Ela foi com a mão até a sua cintura, mas o cliente riu e disse:

_Não. Venha, sente-se aqui no sofá e vou explicar a situação. Aceita um drink, uma água?

Tati aceitou uma água e o cliente foi buscá-la. Ele entregou o copo à Tati, sentou-se ao seu lado e disse:

_Hoje tem sido um dia estranho. Cheguei à minha casa cansado após o trabalho, abri a geladeira e comi um brigadeiro que eu nem sabia existir. Meu filho, que mora com a mãe no interior e passou o fim de semana aqui, deve ter feito e deixado ali. Tirei uma carne do congelador para fazer mais tarde e fui tomar banho. Quando estava saindo do banheiro, uma sensação esmagadora tomou conta de mim. Em um segundo, eu era capaz de entender todo o universo, como se pudesse vê-lo diante dos meus olhos. Do nada antes do Big Bang ao grande nada para o qual caminhamos inexoravelmente. Isso tudo estava sendo muito pesado para mim. Eu me deitei no tapete da sala e fechei os olhos. Tive então a sensação de estar rodeado por monstros e seres malignos que vinham me pegar e senti muito medo de ficar sozinho. Eu precisava de alguém para conversar sobre aquela angústia, mas psicólogos não atendem a essa hora e, ainda que atendessem, seria mais barato chamar uma prostituta. Então entrei na internet e busquei o seu número.

_Uau. Esse brigadeiro do seu filho não devia estar puro.

O cliente olhava fixamente para ela. Já que ele não queria fazer sexo, apenas alguém que o escutasse, chamar um travesti era a opção mais barata. Porém, olhar para aquela pessoa sem um sexo definido o deixava ainda mais confuso. Mas, afinal, o que ele/ela tinha falado fazia sentido. O cliente pegou o celular e enviou uma mensagem para si mesmo: “não se esqueça de cortar a mesada de seu filho por alguns meses”. Depois, deitou no chão e voltou a falar:
_A minha existência na Terra nunca foi suave. Quando estava na faculdade, o colega que dividia o quarto comigo se matou. Fui eu que encontrei o corpo. Ele estava estirado no chão, muito sangue em volta. Aproximei e vi o sangue saindo pela boca e pelo nariz, os olhos sem vida. Desde então, eu não consigo mais ficar no escuro, eu fecho os olhos durante o banho para ensaboar meu cabelo e tenho a impressão de que ele está dentro do box me olhando, a três dedos do meu rosto. Cai algo de madrugada embaixo da cama, eu vou pegar e tenho a impressão que meus dedos vão voltar sujos de sangue. É ridículo, um ateu com medo de fantasma. Mas eu sei que ele sempre esteve me acompanhando para me lembrar de que esta vida não vale a pena, que no final a conta não fecha: é muito gasto para pouco retorno, é muita gente chata para pouca gente legal. É um trabalho de merda do qual no máximo eu posso sair para arrumar outro trabalho de merda.

O cliente fez uma pausa. Ele não percebeu, mas enquanto falava Tati observava todo o apartamento.

_Você se incomoda que eu fume?

_Não, fique à vontade.

Ela foi até a bolsa, pegou uma cigarrilha e a acendeu na varanda, onde começou a falar:

_Você pensa assim justamente por ser ateu. Deus nos vê como nós vemos os peixes em um aquário. Imagina se um peixe, ainda que seja o mais inteligente do mundo, viesse te explicar o sentido da vida. Você certamente acharia aquele peixe prepotente, já que ele tentaria criar uma teoria sem nunca ter olhado um telescópio, sem saber onde fica a África, a Amazônia, sem conhecer todo o sistema solar... É assim que Deus pensa quando nos vê buscando o sentido da vida e tentando explicar o universo através do nosso cérebro usando apenas nossa linguagem e nossos números, todos completamente limitados: como a gente veria um peixinho dourado tentando resolver uma questão de álgebra.

_O que você diz faz um sentido muito grande, mas talvez eu só pense assim porque estar chapado me deixou mais burro.

_Eu penso assim porque eu já vi muito desta vida. Quando eu tinha 13 anos comecei a me vestir de mulher. Meu pai me deu uma surra, me colocou para fora de casa e disse: “vá viver a sua vida, mas saiba que desse jeito você está fudido, ou vai ser cabeleireiro ou vai ser puta”. Eu não sabia cortar cabelo, então tive que escolher a última opção. Não que eu soubesse ser puta, mas isso eu encontrei muitos homens para me ensinar. Vou te falar, a maneira como você encontrou o seu colega é fichinha perto do que eu já vi durante estes anos na rua. E é por isso que eu espero ansiosamente o dia em que Deus ou algum enviado tenha uma explicação muito iluminada para esta bosta de vida.

Ela deu um trago profundo e exalou a fumaça para dentro da sala, onde ficou parada como uma névoa. Ela foi até a bolsa e continuou sua história:

_Até o dia em que um cara me matou. Um grande filho da puta. Mas ele matou Tati Bernardi uma noite e na manhã seguinte nasceu Tati Tresoitão.

Ela tirou uma pistola da bolsa.

_Você deve estar achando curioso eu ter esse nome e usar uma pistola, né? Eu realmente usei revólver calibre 38 um tempo, mas perdi a arma durante um assalto. Tudo bem, digamos que o calibre a que tresoitão se refere não é o da minha arma.

Ela riu sozinha, apontou a arma para seu cliente no chão e disse:

_Você já deve ter lido nos jornais sobre mim e sabe que fingir-se de morto não vai adiantar.

Mas ele já estava dormindo há algum tempo, nem viu o assalto ser anunciado. Tati então se ajoelhou, colocou a pistola dentro da boca de seu cliente e disparou. Ela se levantou, viu o sangue começar a jorrar da sua boca e riu da situação: ele terminou justamente como o amigo que tanto o impressionara.

Ela levou todos os objetos de valor que encontrou na casa até o porta-malas do carro da vítima na garagem. Ao contrário dele, a imagem de uma pessoa morta com um tiro na boca não a perturbou e antes de atravessar o portão com seu novo carro, ela já não se lembrava mais do último olhar aterrorizado de seu cliente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário