segunda-feira, 23 de setembro de 2013


Décima Rodada, miniconto 1


O milagre






Quando o celular tocou e vi as duas letras no mostrador - “VÓ”- intuí que tinha chumbo grosso a caminho. Desde o último encontro, dois anos antes, quando trocamos farpas e acusações, ela me chamando de playboyzinho irresponsável, eu retrucando com megera controladora, não trocávamos palavra. De qualquer forma, atendi imediatamente.

- Helinho, é sua avó, tudo bem?

- Tudo bem, vó, e a senhora?

- Onde você está agora?

- Estamos em Belo Horizonte, temos um show programado para sábado.

- Pegue um avião e venha me ver amanhã sem falta... Eu pago as despesas.

- Vó, pelo amor de Deus...

- O assunto vale sete milhões de reais, se você não vier, decidirei sozinha.

- Tá bem, eu vou.

Assim que desliguei o celular, fiquei matutando sobre o que poderia valer R$ 7 milhões, mas nada me ocorreu. Os imóveis e o negócio de fabricação e comércio de móveis deixados pelo meu avô certamente valiam mais que isso e cada um individualmente valia bem menos. Não adianta encafifar com isso, saberei amanhã – pensei com meus botões.

*

Eram aproximadamente onze da manhã quando me anunciei ao porteiro.

- Bom dia, sou neto de Dona Esmeralda da cobertura, ela está me esperando.

- Tudo bem, ela me avisou. Só que ela não mora mais na cobertura, está no 101.

Aquela informação me deixou ainda mais ressabiado. Vovó adorava morar na cobertura, onde mantinha um verdadeiro jardim suspenso e passava horas cuidando de suas plantas e até mesmo conversando com elas. Subi pelas escadas e quando cheguei ao apartamento e a porta da sala se encontrava entreaberta. Assim que entrei, minha avó apareceu, caminhou em minha direção e deu-me um beijo acompanhado de um abraço afetuoso.

- Vamos para o escritório – disse de forma direta, como era seu estilo.

Assim que entramos no escritório, ela sentou-se numa cadeira atrás da mesa e indicou-me uma das duas poltronas à sua frente. A outra poltrona encontrava-se entulhada de pastas e envelopes.

- Filho, faz um ano que descobri que tenho câncer no estômago.

- Meu Deus, Vó, que coisa terrível...

- E tem mais, os médicos acham que viverei somente mais um ano. Portanto, dentro de um ano você seria dono disto tudo, se estivesse à frente dos negócios, mas você resolveu ser pop star...

- Vó, não vamos começar tudo de novo...

- Claro que não! Você está vendo aquelas pastas marrons sobre a poltrona? São os contratos de venda de sete apartamentos deste prédio, da cobertura, mais a venda do sítio de Teresópolis e da casa de Mangaratiba.

- A senhora está vendendo isso tudo?

- Não, já vendi. O dinheiro encontra-se aplicado em papéis de renda fixa de grandes bancos. São os sete milhões que lhe falei e que pretendo doar à caridade caso você não assuma os negócios de seu avô que, aliás, não vão bem por falta de direção competente.

- Isso não é uma negociação, é uma imposição!

- Chame do que quiser! O passo seguinte à doação será a venda deste apartamento e da loja, seguida de nova doação do dinheiro apurado.

- Isto é um absurdo!

- Outra coisa, nem pensar em interdição judicial. Aquele envelope azul contém uma declaração de uma junta médica atestando minha plena sanidade mental.

- Puxa, vó, eu não faria isso...

- Também acho que não. Mas, como diz a propaganda do banco, vai que...

- Eu não posso abandonar a banda assim...

- Pode sim. O que não vai faltar é músico desempregado para entrar no seu lugar!

- As minhas roupas...

- As suas roupas de lá não têm serventia aqui!

- Mas Vó, eu preciso pelo menos...

- Helinho, eu te amo demais, mas não vou permitir que você coloque o patrimônio de seu avô naquela banda medíocre. Se é para gastar o dinheiro, eu mesma gasto. É pegar ou largar, fingir-se de morto não vai adiantar.

Meus argumentos estavam sendo massacrados pela objetividade de minha avó, mas no fundo, eu estava gostando. Ela havia criado uma saída honrosa para mim, eu poderia voltar para casa sem reconhecer o erro de oito anos atrás, quando atingi a maioridade e abandonei minha avó, a loja e os estudos para correr atrás de um sonho que hoje eu sabia impossível.

- Quando eu começo?

- Agora. O quarto do meio é seu. Ah, mais uma coisa, use mangas compridas, essas tatuagens recomendam muito mal...

*

Dez anos se passaram e minha vida mudou completamente, encontrei minha cara metade, tenho um casal de filhos e o negócio de móveis vai muito bem. Estamos em torno de uma mesa toda enfeitada com doces e bolo de aniversário, cantando o “parabéns a você” em homenagem aos 85 anos de minha avó em sua nova casa de campo em Petrópolis, onde ela leva uma vida tranquila junto às plantas que tanto ama.

*

E pensar que tudo começou com o aparecimento de um câncer de estômago descoberto há onze anos e que foi curado, segundo minha avó, graças à intervenção divina de Santa Terezinha.

Será?...

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