Nona rodada, miniconto 6
Moto-contínuo
Sei que muita gente diz “se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais".
Ocorre que a vida, se repararmos bem, é, na verdade, um extraordinário globo da morte. De onde, portanto, desejar, fazer por onde ou simplesmente acelerar jamais significou sair. De tal maneira que possuir sob si uma motocicleta jamais significará liberdade. Porque eu nunca, aliás, reivindiquei pra mim uma semelhante motocicleta. ‘Essa moto’, como eles dizem, são minhas circunstâncias. Quando dei por mim, já estava montada nela, obrigada a domá-la sem que jamais me houvessem ensinado a pilotar, sem que me houvessem trazido um capacete e outros itens de segurança. Sem que eu jamais houvesse reivindicado uma motocicleta como meio, como forma ou transporte, uma motocicleta estranha que me obriga girar, girar, girar, sem jamais verdadeiramente permitir sair do sempre mesmo lugar, traçar para si e para a própria vida um objetivo.
Sobre ‘essa moto’, sob minhas circunstâncias, manter a velocidade é preciso. Ainda que no globo e na vida não se tenha pra onde ir, ainda que se esteja sempre parado, estagnado sob a lona abafadiça do circo, enjaulado no perpétuo circular de um globo de quase-morte. Um globo rangente, obsoleto, por que quase ninguém mais se interessa ou pagaria um ingresso.
No globo é imperativo manter contínua a velocidade.
Interromper-se no globo, nausear-se, entediar-se ou simplesmente não mais poder significa despencar onde não há rede de proteção, a motocicleta indomável tombando estridente sobre nosso tórax, membros e nossa cabeça. Significa o risco abjeto de levar conosco outros globo-motociclistas, homens e mulheres que nos odiarão em virtude do acidente a que foram por nossa culpa e erro expostos, desejando-nos punição, vexame e degredo aguilhoados ao centro da estrutura de ferro sob a lona enegrecida do circo.
Portanto, àqueles que me criticam, que se incomodam com o ronco do escapamento, que me responsabilizam ao sufocar com a fumaça de combustível queimado, que se impacientam com a perpétua repetição da sempre mesmíssima manobra, por favor, que uma única coisa reste finalmente clara: aquilo que, pra quem vê de fora, aparenta injustificado desperdício de oportunidade, pra mim, presa às minhas próprias desgraçadas circunstâncias, é simplesmente calvário, é condenação à sempre mesma insuportável repetição.

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