De braços abertos, mas sem proteger ninguém
Vocês me veem. Eu vejo vocês. Vocês me fazem um pedido. Eu sou uma estátua de concreto, não posso atender.
Criado em uma das favelas que vejo daqui, ele trabalhava desde que se entende por gente com o que tinha. Foi engraxate, flanelinha, mas o que ele gostava mesmo era de pescar. Até que alguém um dia disse a ele que somente através da escola e da educação ele conseguiria ser um homem de bem. Então, começou a freqüentar a escola durante a noite, mas ele chegava lá tão cansado que não conseguia assistir às aulas acordado.
Até o dia em que a professora começou a explicar sobre o holocausto e passou um filme que ele até achou interessante, mas era em preto e branco e tinha algumas horas de duração, então ele não conseguiu ficar acordado nem meia hora após os créditos iniciais. Ao final, a professora perguntou ironicamente o que ele achou da história. Ele disse que tinha gostado e que a situação das pessoas no filme era parecida com a dele. A professora pediu para ele explicar. Ele disse que uma época teve que morar na rua. Ele estava com frio, com fome, mas as pessoas olhavam para ele e não tinham vontade de ajudá-lo, só medo que ele lhes roubasse a carteira. Ele explicou que todos sempre acharam que pessoas como ele, “preto e favelado”, eram uma ameaça e o governo então mata essas pessoas com o dinheiro do povo. A professora disse que ele não entendeu nada, que o filme era sobre judeus e ele saiu achando que a professora é quem não entendeu nada.
Indo para casa, ele conheceu uma garota mais velha, linda e que já tinha uma moto. Às vezes, eles iam juntos para a praia e ficavam namorando deitados na areia olhando para mim. Ele me agradecia, não entendia como uma garota tão bonita que tinha até uma moto deu bola para ele que muitas vezes não tinha dinheiro nem para pegar ônibus. De nada, filho, mas eu não tive nada com isso.
Foi quando ele percebeu que a escola iria demorar muito tempo para transformá-lo em um homem de bem, quando ele tinha pressa de casar com a garota da moto e passar a vida inteira andando na garupa dela. Melhor: ele resolveu comprar a própria moto, levar aquela garota a todos os lugares, dar a ela tudo de melhor. Conseguiu uma arma com os traficantes da favela que ele morava, foi para a mesma praia onde tinha namorado e seu caminho cruzou com o de dois policiais de ronda ali e ele foi preso.
No dia seguinte, vi a garota cruzando a cidade na sua moto. Ela parou em um sinal, levantou a viseira do capacete e olhou para mim, como se pedindo um conselho. Gostaria de dizer que se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais. Existem tantos lugares no mundo para onde eu gostaria de ir, porém eu sou obrigado a ficar aqui, na mesma posição embaixo de chuva ou sol. Eu não pude dizer nada e apenas a olhei de volta com a minha expressão congelada. Ela seguiu em frente, vendeu a moto e com o dinheiro pagou a fiança do rapaz por quem já estava apaixonada. Na saída, avisou a ele que se algum dia essa história se repetisse ele nunca mais a veria. Nos anos seguintes, houve época em que eles passaram fome, houve meses em que comeram apenas pé de galinha que ele conseguia na xepa da feira, mas ele nunca mais cometeu nenhum ato criminoso.
Olhando daqui, eu acredito que não exista nada mais inconseqüente do que se apaixonar. Aliás, existe: ter filhos. Daqui, eu vejo vocês acordados de madrugada cuidando dessas crianças, vejo vocês desesperados por não terem dinheiro para sustentá-las, vejo vocês preocupados com resfriado, cólera, caxumba, sarampo, meningite... Até o filho crescer e só faltar bater na casa de vocês. Alguns até isso fazem. Mas eu devo pensar assim porque o meu coração é feito de pedra sabão já que eles se casaram, tiveram três filhos e mudaram para um barraco na mesma favela com um único cômodo 9 vezes menor que o tamanho da minha mão.
Anos depois, quando ele estava conseguindo se firmar como ajudante de pedreiro, saiu de casa fazendo as contas e viu que em breve conseguiria comprar a moto que sempre quis. Na birosca, passava um jogo e ele parou para saber o resultado. Foi quando encontrou um policial, o Cara de Macaco. Daqui de cima, eu já vi o Cara de Macaco fazer cada coisa e, para poupá-los dos detalhes, eu direi apenas que, se eu pudesse, eu o esmagaria com cada uma das minhas toneladas de concreto.
O Cara de Macaco o mandou entrar no carro. Ele discutiu, disse que já estava indo para casa, mostrou os documentos. Mas o Cara de Macaco estava participando de alguma operação que lhe conferia ainda mais poderes para fazer o que quisesse e, como já não gostava dele, obrigou que ele entrasse no carro. Ele entrou no carro da polícia e olhou para mim. Eu olhei para ele e me lembrei do filme que a professora passou muitos anos antes. Eu concordava com ele: a professora é que não entendeu nada.
O carro disparou e eu nunca mais o vi. Eu sou uma estátua, não posso sair de onde estou e ir procurá-lo. Vocês podem se mexer, possuem cães farejadores e pás para cavar, mas não parecem ter interesse em participar da busca. Às vezes, eu acho que o coração de vocês também é de pedra sabão.
(Nota do autor: título retirado da música "Um Trem para as Estrelas" do Cazuza, "Estranho o teu Cristo, Rio / Que olha tão longe, além / Com os braços sempre abertos / Mas sem proteger ninguém")
(imagem: http://

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