sexta-feira, 18 de outubro de 2013

miniconto 4 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"

Xexelento








O argumento para quem não tem argumento
É esse
Nunca me passou no pensamento
Desenvolver um tema desse.
Achei tao xexelento
Que despertou meu interesse.
Fui então escrevendo
Antes que eu esquecesse
Verbo terminado em "ento"
Adjetivos terminado em "esse".
Tinha que ter fundamento
E agradar quem o lesse
Pois certamente no julgamento
Um dos critérios seria esse.
Caprichei no acabamento,
Evitei que erros cometesse.
No final do empreendimento
Pedi que dessem a nota que merecesse
Não esperava tanto reconhecimento
Queriam até que o vendesse
Avisei que sentia muito, mas que aquele conto ao OMICO pertencesse.

(imagem: http://www.oliverray.ca/Man%20Writing%20PRINT%20WEB.jpg)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

miniconto 3 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"



Desprezível





Wantuil olhou para o relógio novamente. Não era a primeira nem seria a última vez que iria olhar. “Vamos lá! Vamos lá!”, dizia internamente. Contava uma a uma cada pessoa que saía da fila e mudava a perna de apoio do corpo constantemente, demonstrando sua impaciência. “Logo eu que sempre odiei fila estou aqui novamente, um dia vou ser tão rico que terei uma pessoa só para enfrentá-las por mim. Odeio fila! Odeio fila!”. Ouvia as conversas a sua volta e, à medida que o tempo passava, seu mau humor ia aumentando. “Por que será que colocam as pessoas mais idiotas nas filas em que estou?”, pensou ele com seus botões. Dito isso, passou a reparar as que o rodeavam. Dois caras da fila ao lado lhe chamaram a atenção. Um, praticamente sem cabelo no topo da cabeça, puxava os da lateral para cobri-la, porém estes também já se encontravam ralos e tinham que ser fixados com gel para manterem-se no lugar estrategicamente determinado. Para agravar o que já era uma desgraça, o miserável ainda pintava os heróis da resistência e não havendo cabelo suficiente pintava mais o couro cabeludo do que tudo. “Francamente!”, suspirou Wantuil, “por que não raspa essa porra?”.


Já o colega do careca não assumido parecia ter mergulhado no guarda-roupa daquele cantor brega, Falcão, e saído de lá com a combinação mais estapafúrdia possível. Este se esmerou! As sandálias amarelas do tipo havaianas eram dois ou três números menores do que seus pés, pés que por si só já irritavam pelo aspecto de sujeira e desleixo. As unhas, que há anos não deviam ser aparadas, curvavam-se para baixo dos dedos como se quisessem se esconder. Sobravam sola do pé e calcanhar para fora do calçado chegando a tocar o chão, os dedos avançavam tanto além da extremidade da sandália que pareciam agarrá-la por baixo para ajudar a carregá-la. Wantuil pensou: “será que havaiana menor é mais barata?”. A bermuda era de um xadrez de cores tão vivas que o incomodava, “como uma criatura entra em uma loja e se agrada dessa peça? Se ele quando comprou teve a intenção de irritar quem a olhasse, acertou em cheio”. Para completar a desastrada indumentária, ele combinou com uma camisa com estampas tão alegres quanto o xadrez da bermuda, porém com cores completamente desconexas e um boné verde-água desbotado e puído.

Wantuil desabafou consigo mesmo: “que me desculpem os politicamente corretos, mas nutri de imediato um profundo desprezo por aquelas criaturas”.

Distraído, Wantuil não notou o rapaz que entrou na loteria, mostrou uma arma e foi pedindo os pertences de cada um na fila. Ao chegar diante dele, pediu o dinheiro e ele não entendendo disse: “meu dinheiro é para pagar aluguel!”. Ao sentir-se contrariado, o ladrão ergueu a arma e, quando a apontou na direção de Wantuil, levou um safanão na região do ouvido. Ele foi ao chão e a arma caiu mais a diante. Ao tentar alcançá-la, um chute providencial no queixo colocou o facínora fora de combate. Foi quando Wantuil já refeito do susto observou que o objeto que vira voando após o chute era uma pequena sandália amarela já sua conhecida e que o safanão desferido na fuça do meliante de tão violento tinha erguido uma complexa malha de cabelos pintados expondo assim a careca reluzente de quem o desferiu.

Muito envergonhado consigo mesmo, Wantuil pegou a sandália e a calçou gentilmente naqueles pés mal tratados e erguendo-se caminhou até o outro agora amigo. Pedindo licença, baixou cuidadosamente os cabelos e escondeu, ainda que parcialmente, a careca do seu bem feitor que disse: “desculpe a violência, mas o argumento para quem não tem argumento e esse”.

Depois de verem o vagabundo ser jogado no alçapão da viatura policial, Wantuil e seus novos melhores amigos desceram a rua conversando animadamente rumo ao boteco da esquina para uns chopes de comemoração. Dizem que nunca mais se separaram.



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

miniconto 2 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"


Uma Bola de Carne, Sangue e Merda


Eu me inscrevi para cursar um ano da minha graduação na Universidade Estadual de Michigan e fui aprovada.

Durante os primeiros meses nos Estados Unidos, mantinha contato diário com a minha mãe. Pouco depois da minha partida, foi diagnosticado um tumor na sua testa. Passávamos horas ao telefone, ela pedia a minha presença ao seu lado, contava dos horrores do tratamento, dos pensamentos suicidas e, consumida pela culpa, comprei uma passagem de volta para o Brasil.

Cheguei ao Rio durante o carnaval de 2011. Peguei um táxi, deixei minhas malas em casa e fui direto para o INCA. No caminho, cruzei com um bloco de carnaval que tomava toda a rua. Desci do táxi, o motorista me cobrou o dobro do preço indicado no taxímetro por ter ficado preso no engarrafamento ao tomar o caminho indicado por mim, o calor estava infernal, trogloditas fedendo à cerveja vestidos de paquita me assediavam, pisei numa poça de mijo, mas consegui chegar ao hospital. Maravilhosa para mim esta cidade não era e o pior estava por vir. Ao entrar no hospital, cruzei com meu antigo padrasto. Perguntei na recepção onde estava a minha mãe e voei para encontrá-la.

Abri a porta e a vi. Nada me preparou para aquele momento: nossas longas conversas ao telefone, os comentários de primos que costumavam visitá-la... O tumor havia crescido inacreditavelmente. Minha mãe estava deitada na maca, líquidos transparentes entravam por tubos enfiados no seu corpo e, no meio da sua testa, o tumor tinha o tamanho de uma laranja. Era vermelho e tinha um pequeno curativo colado a sua ponta.

_Minha filha! Que bom que você chegou!

Ela me abraçou. Seu tumor roçou no meu pescoço e eu senti certa aflição.

_Passei pelo seu ex-marido na recepção. O que ele estava fazendo aqui?

_Ora, ele veio prestar solidariedade. Nessas horas que...

_Solidariedade do patife que abusou da sua filha!?

_Ele tinha um comportamento estranho com você, mas...

_Um adulto passar a mão na vagina de uma criança e deitar nu comigo não é só estranho, mãe, é perverso.

_Filhinha, eu nesta cama e você...

_Não se faça de vítima! O argumento para quem não tem argumento é esse! Você nunca se importou, mãe! Tinha medo dele porque era um diretor famoso e você estava no auge da sua carreira de atriz. Veja, não adiantou! Você foi conivente com o abuso da sua própria filha e mesmo assim sua carreia naufragou. Quer a boa notícia? Os jornais e revistas vão adorar publicar fotos da atriz famosa nos anos 90 com uma pereba dessas na cara!

_O que tá acontecendo com você?! Você nunca foi tão cruel comigo e agora que eu estou aqui...

Não conseguia mais escutar aquela ladainha. Sentia minha respiração pesada, doendo nos pulmões e ouvia foliões ébrios passando na rua. Então eu disse:

_Quando eu entrei no hospital e dei de cara com ele, eu senti ódio de mim mesma por ter vindo ao Brasil, de você, sempre tão passiva. Ódio de toda a humanidade que se acha superior mesmo existindo seres humanos que fazem o que ele fez comigo e continuam sendo um dos intelectuais mais famosos do país. Mas a raiva passou e você não tem ideia como foi libertador. Não dizem que se você guarda uma mágoa por muito tempo ela vira um câncer? Pois eu senti mágoa, ódio e rancor a minha vida toda e tudo isso se materializou como uma bola de carne, sangue e merda. Por sorte, esta bola está na sua testa e não na minha. Licença, vou correr para pegar o próximo voo para os Estados Unidos antes que cancelem a minha matrícula.

Virei, abri a porta e saí. Escutei a minha mãe gritar, dizer algo sobre se matar e a porta bateu, abafando sua voz. Eu parei em pé no corredor e respirei fundo 3 vezes. Era libertador ser este novo eu.

Quando saí do hospital, chovia. Andei algumas quadras tomando chuva, sentindo meu cabelo ficar empapado até que encontrei o bloco que havia atrapalhado meu caminho mais cedo. Eles cantavam uma marchinha:

_Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?...

Fechei os olhos e me lembrei da minha avó, que costumava cantar esta música para mim. Tirei minha blusa ensopada, abri os braços e me juntei à multidão.

(imagem:http://veja2.abrilm.com.br/assets/images/2013/2/124330/blocos-de-rua-rio-de-janeiro-carnaval-20130203-72-size-598.jpg)

terça-feira, 8 de outubro de 2013


miniconto 1 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"




Tati Tresoitão




Ali estavam os quatro, à volta da mesa, no barraco mínimo e desprovido de qualquer conforto, contando o espólio do assalto que haviam acabado de cometer. A quadrilha havia sido formada naquela tarde e o primeiro assalto fora executado com rapidez e precisão, um sucesso total. Enquanto Tati Divinéia permanecia do lado de fora com as duas motocicletas funcionando, dando o apoio necessário à fuga iminente, Beto Bengala, Piruinha e Pinga-Fogo invadiam a loja de conveniência e limpavam o caixa. A ideia do assalto havia partido de Piruinha, mas a distribuição das funções de cada um havia sido definida por Beto Bengala, o mais experiente do grupo. Dessa forma, mesmo sem uma nomeação clara, Beto era o líder do grupo, o que não atendia plenamente seus anseios. Ele queria ser aclamado chefe da quadrilha de forma inconteste para atender sua vaidade e ficar sempre, é claro, com a parte do leão. Assim, quando Tati informou o montante do espólio (R$ 2.083,00) e sugeriu R$ 500,00 para cada um mais uma rodada de cerveja e churrasquinho de gato na birosca do Leôncio com os R$ 83,00 sobrantes, Beto contestou:


- Não concordo! A Tati ficou em cima da moto, só de beleza, não fez nada!


- É, mas se a cana dura aparece...

- Sim, mas não apareceu! É R$ 300,00 prá você que não fez nada e é mulher e R$ 700,00 prá mim que fiz tudo e sou o chefe!

- Só que nada disso foi combinado antes!

Nesse momento os ânimos já estavam bastante exaltados e Beto resolveu mostrar quem mandava, consolidando sua liderança. Sacando sua arma deu o ultimato:

- Você vai calar a boca ou eu devo fazer isso?

- O argumento para quem não tem argumento é esse, muito macho de arma na mão.

Beto Bengala desejava e poderia naquele momento liquidar Tati Divinéia, mas aquilo poderia ser péssimo para sua reputação. Afinal, o que poderia uma mulher de 55 quilos, 1,62 metros e desarmada fazer contra um homem armado de 1,77 metros e quase 90 quilos? Assim, decidiu domar aquela gata rebelde na pancada. Ato contínuo passou a pistola para a mão esquerda e com a direita desferiu um bofetão que fez Tati rodopiar, estatelando-se no chão de terra batida.

- E aí, chega ou quer mais?

- Chega, chega... R$ 300,00 tá bom prá mim – respondeu Tati, enquanto o sangue lhe escorria pelo canto da boca. Tentou levantar-se mas não conseguia, estava totalmente grogue.

- Alguém mais quer dizer alguma coisa? – Perguntou olhando desafiadoramente para os demais do bando. Diante do silêncio dos dois comparsas, Bengala concluiu que sua liderança estava definitivamente consolidada, guardou a arma na cintura e resolveu contar vantagem.

- Porque comigo é assim, piranha nenhuma vai chegar e tirar farinha com a minha ca...

Beto Bengala não chegou a concluir sua frase, interrompida pela inexorável trajetória do projétil que, vindo da mão de Tati, que se encontrava de joelhos, penetrou-lhe pelo pescoço, saindo pela têmpora direita, salpicando o teto de sangue e fragmentos de cérebro e osso. 

Ainda bastante tonta, Tati colocou seu 38 fumegante sobre a mesa e comentou calmamente com seus parceiros:

- Acho que vamos ter que fazer as contas de novo...

- Não, por mim você fica com a parte do Beto e tudo bem – declarou Piruinha.

- Por mim também – acompanhou Pinga-Fogo.

Naquela noite saíam de cena Beto Bengala e Tati Divinéia para dar lugar a Tati Tresoitão – O Mito.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013


>> ESCREVA O SEU MINICONTO <<

Declaramos aberta a Décima Primeira Rodada OMICO de minicontos! 

Por votação, com 4 dos 10 votos apurados, a frase escolhida foi "o argumento para quem não tem argumento é esse" - frase usada pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes, durante uma discussão no twitter.

Para participar é bem fácil: cada um escreve o seu miniconto e depois envia por mensagem para a fanpage da OMICO.

Aos autores mais reservados informamos que é possível manter o anonimato mesmo após o final da Rodada! Basta, para isso, que deixem claro esse desejo no momento da inscrição de seus minicontos.

As regras da Décima Primeira Rodada são:
-> O miniconto deve conter obrigatoriamente a frase "o argumento para quem não tem argumento é esse", na íntegra e sem alterações;
-> Todos os minicontos devem ter título;
-> Não há extensão obrigatória para o miniconto - pode ter quantas linhas você quiser (embora a OMICO recomende que os minicontos tenham em torno de 500 palavras, já que o nosso veículo é o Facebook, e muita gente lê o material publicado na página por meio de celular);
-> Mande uma sugestão de foto ou imagem para ilustrar o seu miniconto – sem se esquecer de citar a autoria ou fonte da ilustração;
-> Cada autor pode inscrever quantos minicontos quiser;
-> Não existe seleção. Todos os minicontos inscritos participarão da rodada e serão submetidos à votação dos leitores;
-> Os minicontos devem ser submetidos até domingo (dia 13/10).

Ao final, como é tradicional nas Rodadas OMICO, organizaremos uma enquete, aberta ao público, na qual todos os minicontos inscritos participam.

Assim, com ampla participação de quem curtiu a fanpage da OMICO, conhecermos o vencedor da Rodada!

Vamos, não desanime! Dê asas ao escritor que existe dentro de você. Participe!!

Organização OMICO

(imagem: http://www.residentevilsac.com.br/wp-content/uploads/2012/09/macaco_vt.jpg)


Caros,


É com enorme satisfação que a ‘OMICO – Oficina de Minicontos’ anuncia o resultado final da Décima Rodada de Minicontos (frase obrigatória: "Fingir-se de morto não vai adiantar")! Como sempre, a votação foi emocionante e disputada voto a voto.

O vencedor da rodada, com 3 dos 7 votos apurados, foi... MINICONTO 5 – "Bellissima"

Parabenizamos o autor do miniconto vencedor por sua vitória e principalmente pela qualidade de seu trabalho! O merecido prêmio para o autor será 1 exemplar do livro "Diário da queda", de Michel Laub!

Agradecemos ao vencedor e a todos os demais participantes (cujos trabalhos não deixaram nada a dever em criatividade e qualidade) pelo empenho e inscrição de seus trabalhos na rodada.

Convidamos, além disso, todos os participantes, minicontista vencedor incluído, para, se assim desejarem, revelar neste ‘post’, seus nomes e o título dos contos que inscreveram na competição.

Em breve mais informações sobre a próxima rodada.

Organização OMICO

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


>>Fábulas avulsas da OMICO<<



A gente com eles e eles com a gente


Éramos diferentes em tudo: eu, brincalhão, oferecido, vaidoso e acima de tudo guloso, muito guloso! Meu amigo tinha uma beleza diferente, do tipo “não tô nem aí”, sabe como é? Se quiserem gostar de mim, terá que ser como eu sou e não como eles querem que eu seja. Era dominador, se impunha naturalmente ou pela força se precisasse. Não levava desaforo pra casa, volta e meia chegava às vias de fato para defender o que achava certo ou o que achava ter direito. Acho que se sentia assim como meu irmão mais velho. Quando um de nós teria que levar bronca ou enfrentar algo, ele logo se oferecia para me poupar, embora nunca tenha dito isso claramente, coisa de amigo do peito. Apesar das diferenças, éramos companheiros de verdade, estávamos sempre juntos e gostávamos disso. Se era para passear, saíamos juntos. Se o caso era de médico, lá íamos nós e pra aproveitar já consultávamos os dois, por que não? Chegamos a ficar internados estando um doente e o outro não, acredite se quiser.

Éramos adotados e o pior que pode acontecer na vida de um adotado aconteceu conosco. Quando achávamos que tínhamos resolvido nossas vidas, inclusive as questões emocionais, fomos posto para adoção uma segunda vez. Dizem os psicólogos que isso gera um sentimento de insegurança terrível e faz com que o adotado lute com todas as forças para não gostar de mais ninguém tentando com isso evitar uma nova decepção, chamam de síndrome do coração partido. Acho que meu amigo sofria disso. Muitas foram as horas, os dias e meses de espera angustiante, até que em um sábado ensolarado surgiu em nossa casa uma família: marido, esposa e um menino. Fomos apresentados a eles e eles a nós. Eu, oferecido que sou, me mostrei simpático, brincalhão e logo me dispus a fazer amizade. Já meu amigo mais uma vez fez o tipo difícil “se quiser tem que me conquistar”. Quis matá-lo! Sempre achei esse jogo muito arriscado, sobretudo para alguém que quer ser adotado.

A bem da verdade, ele tinha seu charme e as coisas sempre deram certo para ele e eu também não tenho do que me queixar. O fato é que fomos aceitos e para agravar a situação fomos morar em uma cidade distante da que vivíamos dando ao caso ares de definitivo, isso é, ou dava certo ou não sei o que seria de nós dois, pois volta não teria. Lembro eu e meu amigo olhando pelo vidro traseiro do carro da família enquanto nossa antiga casa sumia no horizonte, que desespero! Para nossa sorte, a nova casa era ótima e fomos muito bem aceitos. Mandaram construir um quarto duplo com nosso nome na porta e tudo. Tínhamos espaço, comida da boa à vontade e plano de saúde com consultas periódicas, privilégio que nunca havíamos tido, babá exclusiva para nós dois, estávamos ambientados e felizes.

Os anos se passaram, nos tornamos uma família, e como toda família, tínhamos nossas crises, desentendimentos, mas nada que abalasse a vontade de estarmos juntos. Mesmo quando eles tiveram que morar fora cada um por seus motivos, nos reuníamos todos os finais de semana e era muito divertida aquela alegria com hora marcada para acabar. Chegavam sexta e domingo partiam. Nesses dias, a gente só queria ficar juntos, eu e meu amigo deitados no tapete e nosso irmão adotivo lendo ou estudando na rede. Saíamos para passear, jogar bola. Porém, a bola foi logo abolida da lista de entretenimento familiar. Disseram que eu e meu amigo não tínhamos espirito esportivo, ou seja, não sabíamos brincar e acabávamos sempre brigando pela bola. Acho que na verdade era mais pela atenção deles.

Dizem que felicidade não existe, pois lhes digo que ali fomos felizes, eles com a gente e a gente com eles, por muitos e muitos anos. A idade chegou, meu amigo adoeceu e, apesar de todos os cuidados, ele nos deixou. Sofri muito e eles, já que não tinha mais meu companheiro, me levaram para morarmos juntos mais uma vez e ali estávamos novamente juntando os cacos. Dizem que a vida é um eterno recomeçar e nisso éramos craques. Novamente fomos felizes, brincamos, passeamos até que eu, idoso, também adoeci. Cuidaram de mim, não mediram despesas nem esforços. Muitas foram as consultas, muitos foram os remédios, exames, cirurgias, curativos, horas de sono, até que os médicos acharam por bem abreviar meu sofrimento e assim o fizeram. Quando perguntado a um idoso o que ele achava da morte, ele disse: “diante de tudo que me foi tirado em vida a morte tem pouco para levar, pois o que me resta são lembranças e minhas lembranças ninguém leva”

Obrigado aos meus donos pelos anos de respeito, amizade, dedicação e principalmente boas lembranças.

Ass: Zé Bento (o oferecido que vos fala) e Zé Nicolau (o marrento que pediu que eu falasse)


(Já votou no melhor conto da Décima Rodada? A votação continua aberta em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=546698785402856)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

miniconto 6 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Código 1001



Fui até o décimo andar e pedi para falar com o Sr Ludovico, dono da fábrica. A secretária me disse que ele estava almoçando em sua sala, mas poderia me receber. Entrei, ele estava comendo um salmão com legumes, me sentei de frente para ele e disse:

_Eu me demito.

_Que?

_O senhor está surdo?! Eu me demito, porra!

_Eu entendi o que você disse, só queria entender o porquê depois de tantos anos de empresa...

_Quando eu entrei nesta sala, pensei: "eu ficaria muito puto se fosse esse peixe que morreu para alimentar um cara tão babaca como o meu chefe. Da minha parte, eu não daria nem a minha merda para alimentar o Sr Ludovico". Logo depois, me dei conta de que o senhor não come a minha carne, mas eu gasto os melhores anos da minha vida para que o senhor seja ainda mais rico. Eu dou o meu suor para que a empresa do senhor dê lucro. Eu sacrifico o tempo com os meus filhos, me arrisco nas máquinas perigosíssimas da sua fábrica para um salário de fome no final do mês!

_Compreendo. E o senhor acha que vai viver de que exatamente?

_Não sei. Ando pensando que talvez eu não precise de tudo isso para...

_Perfeitamente. Já entendi.

O Sr Ludovico me interrompeu, tirou o telefone do gancho, anunciou uma emergência código 1001 ao telefone e, antes que ele recolocasse o fone na base, um segurança invadiu sua sala, injetou uma droga no meu pescoço e então eu apaguei.

*

Acordei me sentindo desconfortável e percebi estar sentado em uma poltrona com pés e mãos atados. O segurança que havia me drogado se aproximou e começou a dar instruções:

_Demorou a acordar! O senhor assistirá a algumas cenas que serão projetadas nesta parede. Saiba que fingir-se de morto não vai adiantar, por isso instalarei nos seus olhos estes mecanismos que não lhe permitirão fechar os olhos.

Depois de colocados os equipamentos que mantinham meus olhos abertos, a projeção começou. Na primeira cena, vi meus filhos estudando no melhor colégio da cidade, em suas mãos a aprovação no vestibular mais concorrido do país. Logo, a cena cortou para uma praia paradisíaca. Tentava definir se o mar era verde ou azul quando me vi mergulhando entre peixes coloridos ao lado da minha esposa e dos meus filhos. Corta. Estamos em uma feira com os mais recentes lançamentos eletrônicos. São gadgets incríveis controlados pelo movimento dos olhos, pela voz... Eu e minha família olhamos tudo maravilhados. Corta. O carro do ano. Corta. O corretor anunciando uma oportunidade única no local onde sempre desejamos morar. Sauna, piscina, um quarto para cada filho. Corta.

*

O segurança me desatou, saí ainda tonto da sala e encontrei a secretária do Sr. Ludovico.

_Como vai? Ele deseja saber se o senhor quer mesmo se desligar da nossa empresa.

_Não, senhora. Peça desculpa a ele se eu o ofendi. Diga que não foi minha intenção, que perdi a cabeça.

_Perfeitamente. Tenha um bom dia de trabalho.

domingo, 29 de setembro de 2013


miniconto 5 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Bellissima






Quando minha mãe me arrastou pra dentro daquele estúdio, não havia lágrimas, não havia choro no meu rosto. Havia, no entanto, um doloroso nó na minha garganta. Eu tremia e mal respirava. Eu simplesmente não queria estar ali. Eu não queria estar ou ser vista naquela fila de outras mulheres como minha mãe, de outras meninas vestidas com enormes vestidos de saias de tule e renda, com penteados engenhosos como gigantescos bolos de casamento.

Eu tremia encostada à parede fria do estúdio, enquanto minha mãe retocava minha maquiagem e ajeitava com laquê o meu penteado elevando-se muitos centímetros acima da minha cabeça. Ela dizia que eu não devia olhar nos olhos daquelas garotas, ela as chamavas de ‘codorninhas’, dizia que, reforçado o meu batom, estaria proibido beber água ou comer qualquer coisa. Eu também teria uma única última oportunidade de ir ao banheiro e, depois, sem desfazer o penteado ou amassar o vestido, deveria ensaiar os passos da coreografia, afinar a garganta, repassar a maneira de postar-me no centro do palco e, simpaticamente, cumprimentar o diretor e a equipe de assistentes que o circundava.

Eu teria também que contar uma anedota, sorrir, embora o vestido fosse terrivelmente desconfortável, os pequenos grampos na base do penteado de numerosos pavimentos espetassem o meu couro cabeludo e o par de sapatos herdados de uma prima comprimisse os meus dedos, ferisse o alto dos meus calcanhares.

O teste era para o papel de uma menina enferma, que passaria quase todo o filme de olhos fechados, na maior parte do tempo morta. Mas minha mãe viera o caminho inteiro, no ônibus, depois no metrô, repetindo que, num teste, para um estúdio grande como aquele, somente saber fingir-se de morta não seria o suficiente. Minha mãe dizia que a escolha recairia sobre algo mais. Que a criança deveria ser bela, esbelta, bem cuidada, com cabelo, unhas e maquiagem feitos. Que a criança deveria ser capaz de provar, no átimo de um teste, ser dotada de múltiplos e raros talentos, que, “somente fingir-se de morto não vai adiantar!”, ela repetia essa frase virando-se pra mim, algo transtornada, algo enfurecida por depender da performance de alguém como eu, fraca, em quem ela nunca poderia um dia querer confiar.

Passava das cinco e meia da tarde quando chamaram o meu nome. O crachá imenso enganchava-se aos bordados do vestido, parte do meu cabelo havia despencado justamente na franja e o penteado como um todo pendia para o lado direito da minha cabeça. Minha mãe me empurrava e eu não queria subir a escadinha de acesso ao palco. O medo, o jejum, o pescoço tombado para o lado esquerdo, a fim de postergar o iminente desmoronamento do bolo de laquê e purpurina equilibrado sobre minha cabeça, comprimindo a minha carótida, tornou inevitável que eu, ao invés de demonstrar múltiplas habilidades e concorrer por aquele papel, desempenhasse ali mesmo, com embaraçosa simplicidade, o suplício de uma criança desacordada.

Socorreram-me mas não me deram o papel. Disseram para a minha mãe que a criança, para trabalhar no estúdio, não poderia ser feia. Fomos embora e, depois daquela tarde, minha mãe passou a levar minha irmã mais nova aos testes de elenco.

(imagem: foto promocional do filme ‘Bellissima’, de Luchino Visconti, 1951 -http://www.imdb.com/title/tt0043332/)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

miniconto 4 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"

Comer, Rezar e Guerrear




Abri os olhos lentamente como quem acorda de um sono profundo, porém nunca na vida me sentira tão refeito por sono algum. Uma sensação de saciedade, tranquilidade e bem estar que jamais experimentara. O ambiente me era estranho, as paredes eram altas e pareciam ser feitas de material sintético. Nelas, não se viam vigas, colunas, portas ou janelas. Com tons de cinza à medida que se erguiam, as paredes avançavam sobre mim em um raio continuo. A iluminação e a ventilação não partiam de um ponto especifico, mas forneciam temperatura e claridade agradável. Reinava no ambiente um silêncio absoluto e não existiam móveis além de macas, como a em que me encontrava deitado.

Girei a cabeça e reparei que não era o único no ambiente. Havia dezenas, talvez centenas a minha direita e outros tantos a minha esquerda, além de outra fileira idêntica a nossa colocada de maneira oposta, como se estivéssemos refletidos por um espelho gigante. Todos, como eu, estávamos deitados de costas com o olhar perdido para o teto, como se víssemos algo no infinito. Notei que os ocupantes das outras macas estavam carecas, passei a mão na cabeça e nada. Aliás, não só na cabeça. Não tínhamos pelo em parte alguma do corpo. Voltei a tocar a cabeça e senti algo diferente. Bem no topo do crânio havia uma saliência subcutânea, mas não incomodava. Pensei: “fingir-se de morto não vai adiantar!”, então dirigi-me à pessoa do lado: “você sabe onde estamos?”. O som da minha voz me soou horrível devido ao silêncio que reinava. Uma voz feminina serena e harmoniosa me veio através da tal protuberância do crânio e disse: “agora que despertou você será integrado à sociedade ideal”. Quando mentalizei o que seria a próxima pergunta, antes de articulá-la, a voz se antecipou e a respondeu prontamente. Criamos a partir dali uma nova forma de comunicação que dispensava a voz na qual meus questionamentos eram respondidos antes que eu terminasse de mentalizá-los e assim fiquei sabendo de tudo:

“Começou em uma determinada noite, uma faixa de mais ou menos 50 quilômetros que cortava a Europa de Leste a Oeste ficou às escuras. Porém, não era simplesmente falta de eletricidade. Toda forma de energia sumira e mesmo com as hidrelétricas, termoelétricas e usinas nucleares funcionando a todo vapor a energia simplesmente não chegava ao fim das linhas de transmissão. As baterias dos carros, as pilhas dos rádios e das lanternas se descarregaram mesmo antes de utilizadas. Um pandemônio se instalou no mundo com os países se acusando mutuamente e de repente não se podia contar com televisão, rádio, carros, metrô, elevador, iluminação pública e nada que dependesse de energia. Um grande incêndio foi causado e milhares de mortes ocorreram pela falta de energia nos hospitais e a queda dos aviões que se encontravam em pleno voo. Do dia para a noite, aquela região voltou à idade média e houve um êxodo de milhões e milhões de pessoas. Com as autoridades restabelecidas, ainda que precariamente, fora da faixa que permanecia às escuras, iniciaram-se as investigações. Tão estúpidas eram as hipóteses e soluções inventadas que resolvemos nos manifestar”.

“E quem são vocês?”, mentalizei. “Somos o que vocês costumam chamar de extraterrestre”. “E o que vocês querem da Terra?”. “Nada! Se pensássemos o universo como uma árvore, a terra seria um fruto estragado em que o homem seria o bicho que o destrói com sua ganância. Da terra, só nos interessaria a Amazônia, o Alasca, o Polo Norte e o Polo Sul, ou seja, os locais onde o homem ainda não se instalou”. “Mas nossa energia vocês quiseram!”. “Nem isso nós queremos, a energia de vocês é primitiva e danifica nossos equipamentos. Usamos a energia do sol que é abundante e não causa danos quando usada corretamente”. “E por que pegaram então?”. “Nossas naves são equipadas com dispositivos que sugam energia de toda e qualquer fonte e nos aproximamos da terra com este equipamento ativado por engano. Só vocês, ignorantes e prepotentes como são, investem tanto tempo nesse tipo de energia com tanto sol disponível. Pense nos danos que a inundação de uma hidrelétrica causa. Pense nos inconvenientes de uma usina nuclear ou a carvão”. “Vocês vão acabar com o Planeta Terra?”. “Não, vocês vão se autodestruir. Nós vamos apenas causar isso. Como? Vamos manter o equipamento ligado tirando toda energia da terra, assim não haverá comida suficiente, pois as máquinas agrícolas não funcionarão, não haverá moradia suficiente, pois os edifícios sem elevadores são inúteis. Então haverá guerras, fome e por fim canibalismo. Como você sabe, na menor dificuldade o homem pratica o canibalismo. Lembra do episodio nos Andes? O homem além de tudo é extremamente ignorante também no que diz respeito à alimentação, basta ver os índices de obesidade nas regiões ditas desenvolvidas. Vocês quando melhoram o poder aquisitivo simplesmente comem até morrer de infarto, aneurisma ou coisa que o valha”. “Como vocês acham que deveríamos agir de uma maneira geral? Quais foram nossos grandes erros?”. “Não há mais tempo para corrigir, pois o homem é egoísta e não pensa no bem comum. Vocês não pensam nas próximas gerações nem da própria família quanto mais na da humanidade. Se a humanidade empregasse o tempo que gasta comendo, guerreando e rezando em estudos não estaria nessa situação”. “E o que pretende com a gente aqui deitado?”. “Estamos desenvolvendo um estudo em que não usaremos mais corpo, nestas cápsulas implantadas no topo do crânio de vocês tem alimento e oxigênio para o funcionamento do cérebro até o fim dos seus dias, partimos do principio que tudo o que queremos na vida são emoções e emoções são provenientes de impulsos elétricos no cérebro e esta cápsula está programada com muito mais emoções que você jamais teria se continuasse com sua vidinha terrestre”.

E assim os corpos foram desligados das cabeças que continuaram ali com o olhar fixo no teto interagindo com os ETs por anos e anos dentro do galpão no meio do deserto com seu revestimento de painéis solares.


(imagem: http://eradourada2012.blogspot.com.br/2012/08/emmanuel-atraves-de-langa-04122009.html)
miniconto 3 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


CONVOCAÇÃO





Enquanto meus colegas saíam de sala, coronel Gonzaga gesticulou indicando que queria falar comigo depois e a sós. Mais tarde, ao me apresentar na sua sala, levantou-se, foi até o corredor, checou de um lado e do outro para certificar-se de que não havia ninguém, trancou a porta a chaves e só então desdobrou parte da folha que trazia impressa nas mãos onde se via o brasão da corporação e o título: “CONVOCAÇÃO”. Como qualquer aluno de ultimo período, me mostrei ansioso para por em prática tudo que aprendera durantes aqueles longos e entediantes meses de aulas teóricas e treinamentos infindáveis. Da gaveta sob a mesa sacou um envelope pardo e despejou sobre o tampo de madeira lustrada todo o seu conteúdo. Viam-se amontoadas ali dezenas de fotos do meu cotidiano nas quais eu era visto nas mais variadas situações. Havia também extratos da minha conta bancária, índices do meu aproveitamento nos mais diversos cursos que fizera no decorrer da minha vida na academia e todo tipo de informações pessoais.


Voltando-se para mim deu início ao discurso com a voz ainda a meio tom como quem teme estar sendo vigiado. “Você foi indicado para uma missão ultra secreta e, embora seu histórico o qualifique plenamente, foi determinante para a escolha o fato de não ter parentes na polícia e nem fora dela. Vejo aqui, porém um baixo rendimento no curso de tiro”. Mostrei-me repentinamente abatido como quem recebera uma ducha de água fria. Impassível, o coronel caminhava em círculos pela sala enquanto abanava o e-mail e continuou o discurso, “sua indicação veio do alto comando e prevê disponibilização imediata. Porém, recomendam, como era de se esperar, que seja submetido por mim a um curso intensivo de tiro prático, pois a missão além de secreta, segundo eles, envolve sérios riscos de confronto a tiros. Portanto nos encontraremos às 5 horas da manhã na baia 8 do estande de tiro prático com armas curtas para darmos início ao treinamento que deverá melhorar sua acuidade em alvos distantes até 20 metros e onde entraremos em maiores detalhes sobre a operação”.

Seguiram-se então uma infinidade de recomendações quanto ao sigilo que deveria ser mantido sobre o assunto, ameaças do que ocorreria comigo caso vazasse algo de qualquer forma que fosse e as orientações de praxe, como deixar uma mala arrumada para uma saída repentina, comentar com o porteiro en passant que eu estava prestes a fazer uma longa viagem para visitar um parente distante, suspender a entrega de jornais e revistas entre outras medidas destinadas a justificar meu sumiço sem despertar suspeitas. Após ser liberado pelo coronel, percorri o longo corredor que dava acesso às salas da chefia, desci a imensa escada de madeira entalhada que ligava o andar superior ao enorme hall de entrada da delegacia, cumprimentei o Freitas que dava plantão na guarita e caminhei pela calçada as três quadras que me levariam até o estacionamento onde deixara o carro sem me importar com a garoa que caía.

Quando cheguei ao estacionamento, atravessei a larga avenida que àquela hora encontrava-se com pouco movimento, entrei no bar ELEONORA onde já era conhecido, acenei ao Barbosa que com a velha toalha nos ombros veio me atender. Pedi uma bebida e me dirigi à mesa encostada na parede de onde eu poderia observar todo o movimento de entrada e saída da freguesia. Fiquei por ali cerca de 2 horas, levantei então e fui até o carro pegar minha capa, pois a garoa havia se tornado chuva ainda que fraca.

Enquanto fazia o caminho de volta até a delegacia, liguei para o Freitas na guarita que após me fazer jurar por todos os santos que nunca ninguém ficaria sabendo, permitiu minha entrada fora do meu horário sem registrar no livro de ocorrências. Já no hall, ao invés de me dirigir à minha sala como havia prometido, subi a grande escada de madeira e percorri o corredor das salas da chefia parando diante da sala do coronel que abri usando minha chave mixa e abri nas cortinas uma fresta virada para a guarita. Sem acender a luz, liguei o computador e com o olho na tela e os ouvidos em tudo que acontecia no corredor, passei a pesquisar as pastas que ali continham e não demorou encontrei o arquivo com o título: CONVOCAÇÃO.

Ao clicar para que a máquina exibisse seu conteúdo senti um frio percorrer a minha espinha, não pelas imagens dos arquivos, mas por sentir o cano gelado da Pistola 45 que o Freitas encostara na minha nuca. “Você se acha muito esperto, não é?”, perguntou enquanto pressionava ainda mais a arma contra a minha cabeça. Erguendo os braços, girei o corpo ficando de costas para o monitor enquanto providenciava uma desculpa esfarrapada. Mal comecei a falar, notei os olhos esbugalhados do Freitas para a tela e reparei que ele não ouvia nada do que dizia. Voltei então lentamente para o computador e vi o que o enojava: uma infinidade de fotos de sadomasoquismo envolvendo o coronel Gonzaga e crianças, inclusive com necrofilia.

Freitas que era pai de duas meninas lindas fez ânsia de vomito diante das cenas ali expostas, demostrando ter além da já conhecida pouca inteligência o estomago fraco. Após mover para o meu pendrive todos os arquivos excluindo assim do HD, fui até a mesa do coronel, abri a gaveta, peguei o envelope pardo com o meu dossiê e um outro azul lacrado que se encontrava embaixo dele, fechei a gaveta, desliguei tudo, limpei nossas digitais e saímos trancando a porta cuidadosamente para não deixar vestígios. De volta ao bar, instalado novamente na mesa rente a parede, abri e examinei o conteúdo do envelope azul, em seguida destruí as fotos onde eu aparecia fazendo sexo com as crianças enquanto aguardava meu colega terminar seu turno na guarita.

Passava da meia noite quando Freitas chegou, comecei a explicar os motivos da invasão ao escritório do coronel. Contei que fora convocado para um treinamento na manhã seguinte no qual a intenção do coronel seria livrar-se de mim simulando um acidente no treinamento de tiros e dias depois deflagrar um escândalo jogando sobre mim a culpa de toda aquela barbárie e para isso já contava com fotomontagens onde ao invés dele, eu apareceria nas cenas que ele vira no computador. Estando o coronel à frente das investigações e eu não tendo familiares para questionar nada e nem lutar pelos meus direitos, rapidamente daria por encerrado o caso que já rolava na corregedoria após denuncias de que um policial estaria envolvido nos casos de pedofilia que vinham sendo noticiados nos jornais locais. “Que safado!”, disse Freitas.

Com a invasão esclarecida passamos a planejar nossos próximos passos. Mostrei ao Freitas as fotos do coronel impressas que não se conteve e no auge da indignação se manifestou: “fingir-se de morto não vai adiantar, por mim invadíamos a casa do safado agora e dávamos fim nele”. Após convencê-lo a agir seguindo meus métodos e fazê-lo repetir inúmeras vezes seu papel no meu plano, seguimos cada um para sua casa.

Pouco antes das 5 horas da manhã, ao chegar ao estande de tiros já encontrei o coronel no boxe 8 praticando por puro prazer, pois sua sala era forrada de quadros com medalhas de campeonatos de tiros ganhos por ele em várias modalidades. Ao me ver, dispensou as formalidades das continências e enquanto recarregava a arma foi direto ao assunto. “Você foi uma das maiores promessas que passou por aqui nos últimos tempos”, disse o coronel, o tom da sua voz agora não soava nada amigável. “Fui, coronel?”, perguntei com ar de deboche”. “Sim!”, respondeu rispidamente. “Você será desmascarado! Sei tudo sobre você e suas façanhas com essas crianças inocentes, investiguei por conta própria para não enxovalhar o nome da jurisdição, tenho tudo documentado e chegou a hora de você prestar contas aos pais e mães dessas crianças que você molestou”. Após dar uma rápida olhada em volta para me certificar de que estávamos a sós, perguntei: “e como o senhor pretende me forçar a isso?”, mostrando discretamente a arma que carregava na cintura. Quase rindo disse o coronel: “ora rapaz, você teria que ser bem mais ágil com uma arma do que consta no seu histórico para sacar e me atingir se estivéssemos de igual para igual, quanto mais eu estando já com a minha nas mãos”.

Dei um passo para trás e levei a mão à cinta, não para sacar, pois sabia que não seria páreo para o coronel, e sim para fazer o gesto combinado com Freitas, este sim um exímio atirador que aguardava de longe para um tiro de snipe. Atingido na têmpora, o corpo do coronel se projetou no ar e caiu inerte a metros de distancia, já sem vida. Aproximei-me e tirei do seu bolso a falsa CONVOCAÇÃO que eu havia plantado em seu computador dias antes ao saber de suas investigações sobre as minhas atividades sexuais.

Após horas ajudando a equipe da perícia que levantava dados para tentar descobrir de onde poderia ter partido o tiro que atingira o coronel durante nosso treinamento, fui liberado para dar continuidade a minha vida, pois o caso seria tratado como vingança de alguém que acabara preso pelas ações do coronel linha dura.

Ao chegar ao estacionamento, já longe do local do ocorrido, meu amigo Freitas me aguardava consternado. Com tudo que eu passara, convidou-me para almoçar em sua casa, pois segundo ele nada melhor nesses momentos de crise do que companhia da família e por eu não ter a minha própria a família dele a partir dali seria a minha família. Tive que virar para o lado para que ele mesmo sendo burro como era não percebesse minha expressão e o brilho nos meus olhos ao lembrar das suas duas filhinhas lindas.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

miniconto 2 - Décima Rodada, frase obrigatória "Fingir-se de morto não vai adiantar"


Um ateu com medo de fantasma





Tati Bernardi tocou a campainha, o cliente abriu.


_ Ainda bem que você chegou. Entre por favor.

_Ui, que gostoso! Já me recebeu só de toalha.

Ela foi com a mão até a sua cintura, mas o cliente riu e disse:

_Não. Venha, sente-se aqui no sofá e vou explicar a situação. Aceita um drink, uma água?

Tati aceitou uma água e o cliente foi buscá-la. Ele entregou o copo à Tati, sentou-se ao seu lado e disse:

_Hoje tem sido um dia estranho. Cheguei à minha casa cansado após o trabalho, abri a geladeira e comi um brigadeiro que eu nem sabia existir. Meu filho, que mora com a mãe no interior e passou o fim de semana aqui, deve ter feito e deixado ali. Tirei uma carne do congelador para fazer mais tarde e fui tomar banho. Quando estava saindo do banheiro, uma sensação esmagadora tomou conta de mim. Em um segundo, eu era capaz de entender todo o universo, como se pudesse vê-lo diante dos meus olhos. Do nada antes do Big Bang ao grande nada para o qual caminhamos inexoravelmente. Isso tudo estava sendo muito pesado para mim. Eu me deitei no tapete da sala e fechei os olhos. Tive então a sensação de estar rodeado por monstros e seres malignos que vinham me pegar e senti muito medo de ficar sozinho. Eu precisava de alguém para conversar sobre aquela angústia, mas psicólogos não atendem a essa hora e, ainda que atendessem, seria mais barato chamar uma prostituta. Então entrei na internet e busquei o seu número.

_Uau. Esse brigadeiro do seu filho não devia estar puro.

O cliente olhava fixamente para ela. Já que ele não queria fazer sexo, apenas alguém que o escutasse, chamar um travesti era a opção mais barata. Porém, olhar para aquela pessoa sem um sexo definido o deixava ainda mais confuso. Mas, afinal, o que ele/ela tinha falado fazia sentido. O cliente pegou o celular e enviou uma mensagem para si mesmo: “não se esqueça de cortar a mesada de seu filho por alguns meses”. Depois, deitou no chão e voltou a falar:
_A minha existência na Terra nunca foi suave. Quando estava na faculdade, o colega que dividia o quarto comigo se matou. Fui eu que encontrei o corpo. Ele estava estirado no chão, muito sangue em volta. Aproximei e vi o sangue saindo pela boca e pelo nariz, os olhos sem vida. Desde então, eu não consigo mais ficar no escuro, eu fecho os olhos durante o banho para ensaboar meu cabelo e tenho a impressão de que ele está dentro do box me olhando, a três dedos do meu rosto. Cai algo de madrugada embaixo da cama, eu vou pegar e tenho a impressão que meus dedos vão voltar sujos de sangue. É ridículo, um ateu com medo de fantasma. Mas eu sei que ele sempre esteve me acompanhando para me lembrar de que esta vida não vale a pena, que no final a conta não fecha: é muito gasto para pouco retorno, é muita gente chata para pouca gente legal. É um trabalho de merda do qual no máximo eu posso sair para arrumar outro trabalho de merda.

O cliente fez uma pausa. Ele não percebeu, mas enquanto falava Tati observava todo o apartamento.

_Você se incomoda que eu fume?

_Não, fique à vontade.

Ela foi até a bolsa, pegou uma cigarrilha e a acendeu na varanda, onde começou a falar:

_Você pensa assim justamente por ser ateu. Deus nos vê como nós vemos os peixes em um aquário. Imagina se um peixe, ainda que seja o mais inteligente do mundo, viesse te explicar o sentido da vida. Você certamente acharia aquele peixe prepotente, já que ele tentaria criar uma teoria sem nunca ter olhado um telescópio, sem saber onde fica a África, a Amazônia, sem conhecer todo o sistema solar... É assim que Deus pensa quando nos vê buscando o sentido da vida e tentando explicar o universo através do nosso cérebro usando apenas nossa linguagem e nossos números, todos completamente limitados: como a gente veria um peixinho dourado tentando resolver uma questão de álgebra.

_O que você diz faz um sentido muito grande, mas talvez eu só pense assim porque estar chapado me deixou mais burro.

_Eu penso assim porque eu já vi muito desta vida. Quando eu tinha 13 anos comecei a me vestir de mulher. Meu pai me deu uma surra, me colocou para fora de casa e disse: “vá viver a sua vida, mas saiba que desse jeito você está fudido, ou vai ser cabeleireiro ou vai ser puta”. Eu não sabia cortar cabelo, então tive que escolher a última opção. Não que eu soubesse ser puta, mas isso eu encontrei muitos homens para me ensinar. Vou te falar, a maneira como você encontrou o seu colega é fichinha perto do que eu já vi durante estes anos na rua. E é por isso que eu espero ansiosamente o dia em que Deus ou algum enviado tenha uma explicação muito iluminada para esta bosta de vida.

Ela deu um trago profundo e exalou a fumaça para dentro da sala, onde ficou parada como uma névoa. Ela foi até a bolsa e continuou sua história:

_Até o dia em que um cara me matou. Um grande filho da puta. Mas ele matou Tati Bernardi uma noite e na manhã seguinte nasceu Tati Tresoitão.

Ela tirou uma pistola da bolsa.

_Você deve estar achando curioso eu ter esse nome e usar uma pistola, né? Eu realmente usei revólver calibre 38 um tempo, mas perdi a arma durante um assalto. Tudo bem, digamos que o calibre a que tresoitão se refere não é o da minha arma.

Ela riu sozinha, apontou a arma para seu cliente no chão e disse:

_Você já deve ter lido nos jornais sobre mim e sabe que fingir-se de morto não vai adiantar.

Mas ele já estava dormindo há algum tempo, nem viu o assalto ser anunciado. Tati então se ajoelhou, colocou a pistola dentro da boca de seu cliente e disparou. Ela se levantou, viu o sangue começar a jorrar da sua boca e riu da situação: ele terminou justamente como o amigo que tanto o impressionara.

Ela levou todos os objetos de valor que encontrou na casa até o porta-malas do carro da vítima na garagem. Ao contrário dele, a imagem de uma pessoa morta com um tiro na boca não a perturbou e antes de atravessar o portão com seu novo carro, ela já não se lembrava mais do último olhar aterrorizado de seu cliente.