quarta-feira, 2 de outubro de 2013


>>Fábulas avulsas da OMICO<<



A gente com eles e eles com a gente


Éramos diferentes em tudo: eu, brincalhão, oferecido, vaidoso e acima de tudo guloso, muito guloso! Meu amigo tinha uma beleza diferente, do tipo “não tô nem aí”, sabe como é? Se quiserem gostar de mim, terá que ser como eu sou e não como eles querem que eu seja. Era dominador, se impunha naturalmente ou pela força se precisasse. Não levava desaforo pra casa, volta e meia chegava às vias de fato para defender o que achava certo ou o que achava ter direito. Acho que se sentia assim como meu irmão mais velho. Quando um de nós teria que levar bronca ou enfrentar algo, ele logo se oferecia para me poupar, embora nunca tenha dito isso claramente, coisa de amigo do peito. Apesar das diferenças, éramos companheiros de verdade, estávamos sempre juntos e gostávamos disso. Se era para passear, saíamos juntos. Se o caso era de médico, lá íamos nós e pra aproveitar já consultávamos os dois, por que não? Chegamos a ficar internados estando um doente e o outro não, acredite se quiser.

Éramos adotados e o pior que pode acontecer na vida de um adotado aconteceu conosco. Quando achávamos que tínhamos resolvido nossas vidas, inclusive as questões emocionais, fomos posto para adoção uma segunda vez. Dizem os psicólogos que isso gera um sentimento de insegurança terrível e faz com que o adotado lute com todas as forças para não gostar de mais ninguém tentando com isso evitar uma nova decepção, chamam de síndrome do coração partido. Acho que meu amigo sofria disso. Muitas foram as horas, os dias e meses de espera angustiante, até que em um sábado ensolarado surgiu em nossa casa uma família: marido, esposa e um menino. Fomos apresentados a eles e eles a nós. Eu, oferecido que sou, me mostrei simpático, brincalhão e logo me dispus a fazer amizade. Já meu amigo mais uma vez fez o tipo difícil “se quiser tem que me conquistar”. Quis matá-lo! Sempre achei esse jogo muito arriscado, sobretudo para alguém que quer ser adotado.

A bem da verdade, ele tinha seu charme e as coisas sempre deram certo para ele e eu também não tenho do que me queixar. O fato é que fomos aceitos e para agravar a situação fomos morar em uma cidade distante da que vivíamos dando ao caso ares de definitivo, isso é, ou dava certo ou não sei o que seria de nós dois, pois volta não teria. Lembro eu e meu amigo olhando pelo vidro traseiro do carro da família enquanto nossa antiga casa sumia no horizonte, que desespero! Para nossa sorte, a nova casa era ótima e fomos muito bem aceitos. Mandaram construir um quarto duplo com nosso nome na porta e tudo. Tínhamos espaço, comida da boa à vontade e plano de saúde com consultas periódicas, privilégio que nunca havíamos tido, babá exclusiva para nós dois, estávamos ambientados e felizes.

Os anos se passaram, nos tornamos uma família, e como toda família, tínhamos nossas crises, desentendimentos, mas nada que abalasse a vontade de estarmos juntos. Mesmo quando eles tiveram que morar fora cada um por seus motivos, nos reuníamos todos os finais de semana e era muito divertida aquela alegria com hora marcada para acabar. Chegavam sexta e domingo partiam. Nesses dias, a gente só queria ficar juntos, eu e meu amigo deitados no tapete e nosso irmão adotivo lendo ou estudando na rede. Saíamos para passear, jogar bola. Porém, a bola foi logo abolida da lista de entretenimento familiar. Disseram que eu e meu amigo não tínhamos espirito esportivo, ou seja, não sabíamos brincar e acabávamos sempre brigando pela bola. Acho que na verdade era mais pela atenção deles.

Dizem que felicidade não existe, pois lhes digo que ali fomos felizes, eles com a gente e a gente com eles, por muitos e muitos anos. A idade chegou, meu amigo adoeceu e, apesar de todos os cuidados, ele nos deixou. Sofri muito e eles, já que não tinha mais meu companheiro, me levaram para morarmos juntos mais uma vez e ali estávamos novamente juntando os cacos. Dizem que a vida é um eterno recomeçar e nisso éramos craques. Novamente fomos felizes, brincamos, passeamos até que eu, idoso, também adoeci. Cuidaram de mim, não mediram despesas nem esforços. Muitas foram as consultas, muitos foram os remédios, exames, cirurgias, curativos, horas de sono, até que os médicos acharam por bem abreviar meu sofrimento e assim o fizeram. Quando perguntado a um idoso o que ele achava da morte, ele disse: “diante de tudo que me foi tirado em vida a morte tem pouco para levar, pois o que me resta são lembranças e minhas lembranças ninguém leva”

Obrigado aos meus donos pelos anos de respeito, amizade, dedicação e principalmente boas lembranças.

Ass: Zé Bento (o oferecido que vos fala) e Zé Nicolau (o marrento que pediu que eu falasse)


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