miniconto 3 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"
Desprezível
Wantuil olhou para o relógio novamente. Não era a primeira nem seria a última vez que iria olhar. “Vamos lá! Vamos lá!”, dizia internamente. Contava uma a uma cada pessoa que saía da fila e mudava a perna de apoio do corpo constantemente, demonstrando sua impaciência. “Logo eu que sempre odiei fila estou aqui novamente, um dia vou ser tão rico que terei uma pessoa só para enfrentá-las por mim. Odeio fila! Odeio fila!”. Ouvia as conversas a sua volta e, à medida que o tempo passava, seu mau humor ia aumentando. “Por que será que colocam as pessoas mais idiotas nas filas em que estou?”, pensou ele com seus botões. Dito isso, passou a reparar as que o rodeavam. Dois caras da fila ao lado lhe chamaram a atenção. Um, praticamente sem cabelo no topo da cabeça, puxava os da lateral para cobri-la, porém estes também já se encontravam ralos e tinham que ser fixados com gel para manterem-se no lugar estrategicamente determinado. Para agravar o que já era uma desgraça, o miserável ainda pintava os heróis da resistência e não havendo cabelo suficiente pintava mais o couro cabeludo do que tudo. “Francamente!”, suspirou Wantuil, “por que não raspa essa porra?”.
Já o colega do careca não assumido parecia ter mergulhado no guarda-roupa daquele cantor brega, Falcão, e saído de lá com a combinação mais estapafúrdia possível. Este se esmerou! As sandálias amarelas do tipo havaianas eram dois ou três números menores do que seus pés, pés que por si só já irritavam pelo aspecto de sujeira e desleixo. As unhas, que há anos não deviam ser aparadas, curvavam-se para baixo dos dedos como se quisessem se esconder. Sobravam sola do pé e calcanhar para fora do calçado chegando a tocar o chão, os dedos avançavam tanto além da extremidade da sandália que pareciam agarrá-la por baixo para ajudar a carregá-la. Wantuil pensou: “será que havaiana menor é mais barata?”. A bermuda era de um xadrez de cores tão vivas que o incomodava, “como uma criatura entra em uma loja e se agrada dessa peça? Se ele quando comprou teve a intenção de irritar quem a olhasse, acertou em cheio”. Para completar a desastrada indumentária, ele combinou com uma camisa com estampas tão alegres quanto o xadrez da bermuda, porém com cores completamente desconexas e um boné verde-água desbotado e puído.
Wantuil desabafou consigo mesmo: “que me desculpem os politicamente corretos, mas nutri de imediato um profundo desprezo por aquelas criaturas”.
Distraído, Wantuil não notou o rapaz que entrou na loteria, mostrou uma arma e foi pedindo os pertences de cada um na fila. Ao chegar diante dele, pediu o dinheiro e ele não entendendo disse: “meu dinheiro é para pagar aluguel!”. Ao sentir-se contrariado, o ladrão ergueu a arma e, quando a apontou na direção de Wantuil, levou um safanão na região do ouvido. Ele foi ao chão e a arma caiu mais a diante. Ao tentar alcançá-la, um chute providencial no queixo colocou o facínora fora de combate. Foi quando Wantuil já refeito do susto observou que o objeto que vira voando após o chute era uma pequena sandália amarela já sua conhecida e que o safanão desferido na fuça do meliante de tão violento tinha erguido uma complexa malha de cabelos pintados expondo assim a careca reluzente de quem o desferiu.
Muito envergonhado consigo mesmo, Wantuil pegou a sandália e a calçou gentilmente naqueles pés mal tratados e erguendo-se caminhou até o outro agora amigo. Pedindo licença, baixou cuidadosamente os cabelos e escondeu, ainda que parcialmente, a careca do seu bem feitor que disse: “desculpe a violência, mas o argumento para quem não tem argumento e esse”.
Depois de verem o vagabundo ser jogado no alçapão da viatura policial, Wantuil e seus novos melhores amigos desceram a rua conversando animadamente rumo ao boteco da esquina para uns chopes de comemoração. Dizem que nunca mais se separaram.

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