quinta-feira, 10 de outubro de 2013

miniconto 2 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"


Uma Bola de Carne, Sangue e Merda


Eu me inscrevi para cursar um ano da minha graduação na Universidade Estadual de Michigan e fui aprovada.

Durante os primeiros meses nos Estados Unidos, mantinha contato diário com a minha mãe. Pouco depois da minha partida, foi diagnosticado um tumor na sua testa. Passávamos horas ao telefone, ela pedia a minha presença ao seu lado, contava dos horrores do tratamento, dos pensamentos suicidas e, consumida pela culpa, comprei uma passagem de volta para o Brasil.

Cheguei ao Rio durante o carnaval de 2011. Peguei um táxi, deixei minhas malas em casa e fui direto para o INCA. No caminho, cruzei com um bloco de carnaval que tomava toda a rua. Desci do táxi, o motorista me cobrou o dobro do preço indicado no taxímetro por ter ficado preso no engarrafamento ao tomar o caminho indicado por mim, o calor estava infernal, trogloditas fedendo à cerveja vestidos de paquita me assediavam, pisei numa poça de mijo, mas consegui chegar ao hospital. Maravilhosa para mim esta cidade não era e o pior estava por vir. Ao entrar no hospital, cruzei com meu antigo padrasto. Perguntei na recepção onde estava a minha mãe e voei para encontrá-la.

Abri a porta e a vi. Nada me preparou para aquele momento: nossas longas conversas ao telefone, os comentários de primos que costumavam visitá-la... O tumor havia crescido inacreditavelmente. Minha mãe estava deitada na maca, líquidos transparentes entravam por tubos enfiados no seu corpo e, no meio da sua testa, o tumor tinha o tamanho de uma laranja. Era vermelho e tinha um pequeno curativo colado a sua ponta.

_Minha filha! Que bom que você chegou!

Ela me abraçou. Seu tumor roçou no meu pescoço e eu senti certa aflição.

_Passei pelo seu ex-marido na recepção. O que ele estava fazendo aqui?

_Ora, ele veio prestar solidariedade. Nessas horas que...

_Solidariedade do patife que abusou da sua filha!?

_Ele tinha um comportamento estranho com você, mas...

_Um adulto passar a mão na vagina de uma criança e deitar nu comigo não é só estranho, mãe, é perverso.

_Filhinha, eu nesta cama e você...

_Não se faça de vítima! O argumento para quem não tem argumento é esse! Você nunca se importou, mãe! Tinha medo dele porque era um diretor famoso e você estava no auge da sua carreira de atriz. Veja, não adiantou! Você foi conivente com o abuso da sua própria filha e mesmo assim sua carreia naufragou. Quer a boa notícia? Os jornais e revistas vão adorar publicar fotos da atriz famosa nos anos 90 com uma pereba dessas na cara!

_O que tá acontecendo com você?! Você nunca foi tão cruel comigo e agora que eu estou aqui...

Não conseguia mais escutar aquela ladainha. Sentia minha respiração pesada, doendo nos pulmões e ouvia foliões ébrios passando na rua. Então eu disse:

_Quando eu entrei no hospital e dei de cara com ele, eu senti ódio de mim mesma por ter vindo ao Brasil, de você, sempre tão passiva. Ódio de toda a humanidade que se acha superior mesmo existindo seres humanos que fazem o que ele fez comigo e continuam sendo um dos intelectuais mais famosos do país. Mas a raiva passou e você não tem ideia como foi libertador. Não dizem que se você guarda uma mágoa por muito tempo ela vira um câncer? Pois eu senti mágoa, ódio e rancor a minha vida toda e tudo isso se materializou como uma bola de carne, sangue e merda. Por sorte, esta bola está na sua testa e não na minha. Licença, vou correr para pegar o próximo voo para os Estados Unidos antes que cancelem a minha matrícula.

Virei, abri a porta e saí. Escutei a minha mãe gritar, dizer algo sobre se matar e a porta bateu, abafando sua voz. Eu parei em pé no corredor e respirei fundo 3 vezes. Era libertador ser este novo eu.

Quando saí do hospital, chovia. Andei algumas quadras tomando chuva, sentindo meu cabelo ficar empapado até que encontrei o bloco que havia atrapalhado meu caminho mais cedo. Eles cantavam uma marchinha:

_Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?...

Fechei os olhos e me lembrei da minha avó, que costumava cantar esta música para mim. Tirei minha blusa ensopada, abri os braços e me juntei à multidão.

(imagem:http://veja2.abrilm.com.br/assets/images/2013/2/124330/blocos-de-rua-rio-de-janeiro-carnaval-20130203-72-size-598.jpg)

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