sexta-feira, 18 de outubro de 2013

miniconto 4 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"

Xexelento








O argumento para quem não tem argumento
É esse
Nunca me passou no pensamento
Desenvolver um tema desse.
Achei tao xexelento
Que despertou meu interesse.
Fui então escrevendo
Antes que eu esquecesse
Verbo terminado em "ento"
Adjetivos terminado em "esse".
Tinha que ter fundamento
E agradar quem o lesse
Pois certamente no julgamento
Um dos critérios seria esse.
Caprichei no acabamento,
Evitei que erros cometesse.
No final do empreendimento
Pedi que dessem a nota que merecesse
Não esperava tanto reconhecimento
Queriam até que o vendesse
Avisei que sentia muito, mas que aquele conto ao OMICO pertencesse.

(imagem: http://www.oliverray.ca/Man%20Writing%20PRINT%20WEB.jpg)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

miniconto 3 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"



Desprezível





Wantuil olhou para o relógio novamente. Não era a primeira nem seria a última vez que iria olhar. “Vamos lá! Vamos lá!”, dizia internamente. Contava uma a uma cada pessoa que saía da fila e mudava a perna de apoio do corpo constantemente, demonstrando sua impaciência. “Logo eu que sempre odiei fila estou aqui novamente, um dia vou ser tão rico que terei uma pessoa só para enfrentá-las por mim. Odeio fila! Odeio fila!”. Ouvia as conversas a sua volta e, à medida que o tempo passava, seu mau humor ia aumentando. “Por que será que colocam as pessoas mais idiotas nas filas em que estou?”, pensou ele com seus botões. Dito isso, passou a reparar as que o rodeavam. Dois caras da fila ao lado lhe chamaram a atenção. Um, praticamente sem cabelo no topo da cabeça, puxava os da lateral para cobri-la, porém estes também já se encontravam ralos e tinham que ser fixados com gel para manterem-se no lugar estrategicamente determinado. Para agravar o que já era uma desgraça, o miserável ainda pintava os heróis da resistência e não havendo cabelo suficiente pintava mais o couro cabeludo do que tudo. “Francamente!”, suspirou Wantuil, “por que não raspa essa porra?”.


Já o colega do careca não assumido parecia ter mergulhado no guarda-roupa daquele cantor brega, Falcão, e saído de lá com a combinação mais estapafúrdia possível. Este se esmerou! As sandálias amarelas do tipo havaianas eram dois ou três números menores do que seus pés, pés que por si só já irritavam pelo aspecto de sujeira e desleixo. As unhas, que há anos não deviam ser aparadas, curvavam-se para baixo dos dedos como se quisessem se esconder. Sobravam sola do pé e calcanhar para fora do calçado chegando a tocar o chão, os dedos avançavam tanto além da extremidade da sandália que pareciam agarrá-la por baixo para ajudar a carregá-la. Wantuil pensou: “será que havaiana menor é mais barata?”. A bermuda era de um xadrez de cores tão vivas que o incomodava, “como uma criatura entra em uma loja e se agrada dessa peça? Se ele quando comprou teve a intenção de irritar quem a olhasse, acertou em cheio”. Para completar a desastrada indumentária, ele combinou com uma camisa com estampas tão alegres quanto o xadrez da bermuda, porém com cores completamente desconexas e um boné verde-água desbotado e puído.

Wantuil desabafou consigo mesmo: “que me desculpem os politicamente corretos, mas nutri de imediato um profundo desprezo por aquelas criaturas”.

Distraído, Wantuil não notou o rapaz que entrou na loteria, mostrou uma arma e foi pedindo os pertences de cada um na fila. Ao chegar diante dele, pediu o dinheiro e ele não entendendo disse: “meu dinheiro é para pagar aluguel!”. Ao sentir-se contrariado, o ladrão ergueu a arma e, quando a apontou na direção de Wantuil, levou um safanão na região do ouvido. Ele foi ao chão e a arma caiu mais a diante. Ao tentar alcançá-la, um chute providencial no queixo colocou o facínora fora de combate. Foi quando Wantuil já refeito do susto observou que o objeto que vira voando após o chute era uma pequena sandália amarela já sua conhecida e que o safanão desferido na fuça do meliante de tão violento tinha erguido uma complexa malha de cabelos pintados expondo assim a careca reluzente de quem o desferiu.

Muito envergonhado consigo mesmo, Wantuil pegou a sandália e a calçou gentilmente naqueles pés mal tratados e erguendo-se caminhou até o outro agora amigo. Pedindo licença, baixou cuidadosamente os cabelos e escondeu, ainda que parcialmente, a careca do seu bem feitor que disse: “desculpe a violência, mas o argumento para quem não tem argumento e esse”.

Depois de verem o vagabundo ser jogado no alçapão da viatura policial, Wantuil e seus novos melhores amigos desceram a rua conversando animadamente rumo ao boteco da esquina para uns chopes de comemoração. Dizem que nunca mais se separaram.



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

miniconto 2 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"


Uma Bola de Carne, Sangue e Merda


Eu me inscrevi para cursar um ano da minha graduação na Universidade Estadual de Michigan e fui aprovada.

Durante os primeiros meses nos Estados Unidos, mantinha contato diário com a minha mãe. Pouco depois da minha partida, foi diagnosticado um tumor na sua testa. Passávamos horas ao telefone, ela pedia a minha presença ao seu lado, contava dos horrores do tratamento, dos pensamentos suicidas e, consumida pela culpa, comprei uma passagem de volta para o Brasil.

Cheguei ao Rio durante o carnaval de 2011. Peguei um táxi, deixei minhas malas em casa e fui direto para o INCA. No caminho, cruzei com um bloco de carnaval que tomava toda a rua. Desci do táxi, o motorista me cobrou o dobro do preço indicado no taxímetro por ter ficado preso no engarrafamento ao tomar o caminho indicado por mim, o calor estava infernal, trogloditas fedendo à cerveja vestidos de paquita me assediavam, pisei numa poça de mijo, mas consegui chegar ao hospital. Maravilhosa para mim esta cidade não era e o pior estava por vir. Ao entrar no hospital, cruzei com meu antigo padrasto. Perguntei na recepção onde estava a minha mãe e voei para encontrá-la.

Abri a porta e a vi. Nada me preparou para aquele momento: nossas longas conversas ao telefone, os comentários de primos que costumavam visitá-la... O tumor havia crescido inacreditavelmente. Minha mãe estava deitada na maca, líquidos transparentes entravam por tubos enfiados no seu corpo e, no meio da sua testa, o tumor tinha o tamanho de uma laranja. Era vermelho e tinha um pequeno curativo colado a sua ponta.

_Minha filha! Que bom que você chegou!

Ela me abraçou. Seu tumor roçou no meu pescoço e eu senti certa aflição.

_Passei pelo seu ex-marido na recepção. O que ele estava fazendo aqui?

_Ora, ele veio prestar solidariedade. Nessas horas que...

_Solidariedade do patife que abusou da sua filha!?

_Ele tinha um comportamento estranho com você, mas...

_Um adulto passar a mão na vagina de uma criança e deitar nu comigo não é só estranho, mãe, é perverso.

_Filhinha, eu nesta cama e você...

_Não se faça de vítima! O argumento para quem não tem argumento é esse! Você nunca se importou, mãe! Tinha medo dele porque era um diretor famoso e você estava no auge da sua carreira de atriz. Veja, não adiantou! Você foi conivente com o abuso da sua própria filha e mesmo assim sua carreia naufragou. Quer a boa notícia? Os jornais e revistas vão adorar publicar fotos da atriz famosa nos anos 90 com uma pereba dessas na cara!

_O que tá acontecendo com você?! Você nunca foi tão cruel comigo e agora que eu estou aqui...

Não conseguia mais escutar aquela ladainha. Sentia minha respiração pesada, doendo nos pulmões e ouvia foliões ébrios passando na rua. Então eu disse:

_Quando eu entrei no hospital e dei de cara com ele, eu senti ódio de mim mesma por ter vindo ao Brasil, de você, sempre tão passiva. Ódio de toda a humanidade que se acha superior mesmo existindo seres humanos que fazem o que ele fez comigo e continuam sendo um dos intelectuais mais famosos do país. Mas a raiva passou e você não tem ideia como foi libertador. Não dizem que se você guarda uma mágoa por muito tempo ela vira um câncer? Pois eu senti mágoa, ódio e rancor a minha vida toda e tudo isso se materializou como uma bola de carne, sangue e merda. Por sorte, esta bola está na sua testa e não na minha. Licença, vou correr para pegar o próximo voo para os Estados Unidos antes que cancelem a minha matrícula.

Virei, abri a porta e saí. Escutei a minha mãe gritar, dizer algo sobre se matar e a porta bateu, abafando sua voz. Eu parei em pé no corredor e respirei fundo 3 vezes. Era libertador ser este novo eu.

Quando saí do hospital, chovia. Andei algumas quadras tomando chuva, sentindo meu cabelo ficar empapado até que encontrei o bloco que havia atrapalhado meu caminho mais cedo. Eles cantavam uma marchinha:

_Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?...

Fechei os olhos e me lembrei da minha avó, que costumava cantar esta música para mim. Tirei minha blusa ensopada, abri os braços e me juntei à multidão.

(imagem:http://veja2.abrilm.com.br/assets/images/2013/2/124330/blocos-de-rua-rio-de-janeiro-carnaval-20130203-72-size-598.jpg)

terça-feira, 8 de outubro de 2013


miniconto 1 - Décima Primeira Rodada, frase obrigatória “o argumento para quem não tem argumento é esse"




Tati Tresoitão




Ali estavam os quatro, à volta da mesa, no barraco mínimo e desprovido de qualquer conforto, contando o espólio do assalto que haviam acabado de cometer. A quadrilha havia sido formada naquela tarde e o primeiro assalto fora executado com rapidez e precisão, um sucesso total. Enquanto Tati Divinéia permanecia do lado de fora com as duas motocicletas funcionando, dando o apoio necessário à fuga iminente, Beto Bengala, Piruinha e Pinga-Fogo invadiam a loja de conveniência e limpavam o caixa. A ideia do assalto havia partido de Piruinha, mas a distribuição das funções de cada um havia sido definida por Beto Bengala, o mais experiente do grupo. Dessa forma, mesmo sem uma nomeação clara, Beto era o líder do grupo, o que não atendia plenamente seus anseios. Ele queria ser aclamado chefe da quadrilha de forma inconteste para atender sua vaidade e ficar sempre, é claro, com a parte do leão. Assim, quando Tati informou o montante do espólio (R$ 2.083,00) e sugeriu R$ 500,00 para cada um mais uma rodada de cerveja e churrasquinho de gato na birosca do Leôncio com os R$ 83,00 sobrantes, Beto contestou:


- Não concordo! A Tati ficou em cima da moto, só de beleza, não fez nada!


- É, mas se a cana dura aparece...

- Sim, mas não apareceu! É R$ 300,00 prá você que não fez nada e é mulher e R$ 700,00 prá mim que fiz tudo e sou o chefe!

- Só que nada disso foi combinado antes!

Nesse momento os ânimos já estavam bastante exaltados e Beto resolveu mostrar quem mandava, consolidando sua liderança. Sacando sua arma deu o ultimato:

- Você vai calar a boca ou eu devo fazer isso?

- O argumento para quem não tem argumento é esse, muito macho de arma na mão.

Beto Bengala desejava e poderia naquele momento liquidar Tati Divinéia, mas aquilo poderia ser péssimo para sua reputação. Afinal, o que poderia uma mulher de 55 quilos, 1,62 metros e desarmada fazer contra um homem armado de 1,77 metros e quase 90 quilos? Assim, decidiu domar aquela gata rebelde na pancada. Ato contínuo passou a pistola para a mão esquerda e com a direita desferiu um bofetão que fez Tati rodopiar, estatelando-se no chão de terra batida.

- E aí, chega ou quer mais?

- Chega, chega... R$ 300,00 tá bom prá mim – respondeu Tati, enquanto o sangue lhe escorria pelo canto da boca. Tentou levantar-se mas não conseguia, estava totalmente grogue.

- Alguém mais quer dizer alguma coisa? – Perguntou olhando desafiadoramente para os demais do bando. Diante do silêncio dos dois comparsas, Bengala concluiu que sua liderança estava definitivamente consolidada, guardou a arma na cintura e resolveu contar vantagem.

- Porque comigo é assim, piranha nenhuma vai chegar e tirar farinha com a minha ca...

Beto Bengala não chegou a concluir sua frase, interrompida pela inexorável trajetória do projétil que, vindo da mão de Tati, que se encontrava de joelhos, penetrou-lhe pelo pescoço, saindo pela têmpora direita, salpicando o teto de sangue e fragmentos de cérebro e osso. 

Ainda bastante tonta, Tati colocou seu 38 fumegante sobre a mesa e comentou calmamente com seus parceiros:

- Acho que vamos ter que fazer as contas de novo...

- Não, por mim você fica com a parte do Beto e tudo bem – declarou Piruinha.

- Por mim também – acompanhou Pinga-Fogo.

Naquela noite saíam de cena Beto Bengala e Tati Divinéia para dar lugar a Tati Tresoitão – O Mito.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013


>> ESCREVA O SEU MINICONTO <<

Declaramos aberta a Décima Primeira Rodada OMICO de minicontos! 

Por votação, com 4 dos 10 votos apurados, a frase escolhida foi "o argumento para quem não tem argumento é esse" - frase usada pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes, durante uma discussão no twitter.

Para participar é bem fácil: cada um escreve o seu miniconto e depois envia por mensagem para a fanpage da OMICO.

Aos autores mais reservados informamos que é possível manter o anonimato mesmo após o final da Rodada! Basta, para isso, que deixem claro esse desejo no momento da inscrição de seus minicontos.

As regras da Décima Primeira Rodada são:
-> O miniconto deve conter obrigatoriamente a frase "o argumento para quem não tem argumento é esse", na íntegra e sem alterações;
-> Todos os minicontos devem ter título;
-> Não há extensão obrigatória para o miniconto - pode ter quantas linhas você quiser (embora a OMICO recomende que os minicontos tenham em torno de 500 palavras, já que o nosso veículo é o Facebook, e muita gente lê o material publicado na página por meio de celular);
-> Mande uma sugestão de foto ou imagem para ilustrar o seu miniconto – sem se esquecer de citar a autoria ou fonte da ilustração;
-> Cada autor pode inscrever quantos minicontos quiser;
-> Não existe seleção. Todos os minicontos inscritos participarão da rodada e serão submetidos à votação dos leitores;
-> Os minicontos devem ser submetidos até domingo (dia 13/10).

Ao final, como é tradicional nas Rodadas OMICO, organizaremos uma enquete, aberta ao público, na qual todos os minicontos inscritos participam.

Assim, com ampla participação de quem curtiu a fanpage da OMICO, conhecermos o vencedor da Rodada!

Vamos, não desanime! Dê asas ao escritor que existe dentro de você. Participe!!

Organização OMICO

(imagem: http://www.residentevilsac.com.br/wp-content/uploads/2012/09/macaco_vt.jpg)


Caros,


É com enorme satisfação que a ‘OMICO – Oficina de Minicontos’ anuncia o resultado final da Décima Rodada de Minicontos (frase obrigatória: "Fingir-se de morto não vai adiantar")! Como sempre, a votação foi emocionante e disputada voto a voto.

O vencedor da rodada, com 3 dos 7 votos apurados, foi... MINICONTO 5 – "Bellissima"

Parabenizamos o autor do miniconto vencedor por sua vitória e principalmente pela qualidade de seu trabalho! O merecido prêmio para o autor será 1 exemplar do livro "Diário da queda", de Michel Laub!

Agradecemos ao vencedor e a todos os demais participantes (cujos trabalhos não deixaram nada a dever em criatividade e qualidade) pelo empenho e inscrição de seus trabalhos na rodada.

Convidamos, além disso, todos os participantes, minicontista vencedor incluído, para, se assim desejarem, revelar neste ‘post’, seus nomes e o título dos contos que inscreveram na competição.

Em breve mais informações sobre a próxima rodada.

Organização OMICO

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


>>Fábulas avulsas da OMICO<<



A gente com eles e eles com a gente


Éramos diferentes em tudo: eu, brincalhão, oferecido, vaidoso e acima de tudo guloso, muito guloso! Meu amigo tinha uma beleza diferente, do tipo “não tô nem aí”, sabe como é? Se quiserem gostar de mim, terá que ser como eu sou e não como eles querem que eu seja. Era dominador, se impunha naturalmente ou pela força se precisasse. Não levava desaforo pra casa, volta e meia chegava às vias de fato para defender o que achava certo ou o que achava ter direito. Acho que se sentia assim como meu irmão mais velho. Quando um de nós teria que levar bronca ou enfrentar algo, ele logo se oferecia para me poupar, embora nunca tenha dito isso claramente, coisa de amigo do peito. Apesar das diferenças, éramos companheiros de verdade, estávamos sempre juntos e gostávamos disso. Se era para passear, saíamos juntos. Se o caso era de médico, lá íamos nós e pra aproveitar já consultávamos os dois, por que não? Chegamos a ficar internados estando um doente e o outro não, acredite se quiser.

Éramos adotados e o pior que pode acontecer na vida de um adotado aconteceu conosco. Quando achávamos que tínhamos resolvido nossas vidas, inclusive as questões emocionais, fomos posto para adoção uma segunda vez. Dizem os psicólogos que isso gera um sentimento de insegurança terrível e faz com que o adotado lute com todas as forças para não gostar de mais ninguém tentando com isso evitar uma nova decepção, chamam de síndrome do coração partido. Acho que meu amigo sofria disso. Muitas foram as horas, os dias e meses de espera angustiante, até que em um sábado ensolarado surgiu em nossa casa uma família: marido, esposa e um menino. Fomos apresentados a eles e eles a nós. Eu, oferecido que sou, me mostrei simpático, brincalhão e logo me dispus a fazer amizade. Já meu amigo mais uma vez fez o tipo difícil “se quiser tem que me conquistar”. Quis matá-lo! Sempre achei esse jogo muito arriscado, sobretudo para alguém que quer ser adotado.

A bem da verdade, ele tinha seu charme e as coisas sempre deram certo para ele e eu também não tenho do que me queixar. O fato é que fomos aceitos e para agravar a situação fomos morar em uma cidade distante da que vivíamos dando ao caso ares de definitivo, isso é, ou dava certo ou não sei o que seria de nós dois, pois volta não teria. Lembro eu e meu amigo olhando pelo vidro traseiro do carro da família enquanto nossa antiga casa sumia no horizonte, que desespero! Para nossa sorte, a nova casa era ótima e fomos muito bem aceitos. Mandaram construir um quarto duplo com nosso nome na porta e tudo. Tínhamos espaço, comida da boa à vontade e plano de saúde com consultas periódicas, privilégio que nunca havíamos tido, babá exclusiva para nós dois, estávamos ambientados e felizes.

Os anos se passaram, nos tornamos uma família, e como toda família, tínhamos nossas crises, desentendimentos, mas nada que abalasse a vontade de estarmos juntos. Mesmo quando eles tiveram que morar fora cada um por seus motivos, nos reuníamos todos os finais de semana e era muito divertida aquela alegria com hora marcada para acabar. Chegavam sexta e domingo partiam. Nesses dias, a gente só queria ficar juntos, eu e meu amigo deitados no tapete e nosso irmão adotivo lendo ou estudando na rede. Saíamos para passear, jogar bola. Porém, a bola foi logo abolida da lista de entretenimento familiar. Disseram que eu e meu amigo não tínhamos espirito esportivo, ou seja, não sabíamos brincar e acabávamos sempre brigando pela bola. Acho que na verdade era mais pela atenção deles.

Dizem que felicidade não existe, pois lhes digo que ali fomos felizes, eles com a gente e a gente com eles, por muitos e muitos anos. A idade chegou, meu amigo adoeceu e, apesar de todos os cuidados, ele nos deixou. Sofri muito e eles, já que não tinha mais meu companheiro, me levaram para morarmos juntos mais uma vez e ali estávamos novamente juntando os cacos. Dizem que a vida é um eterno recomeçar e nisso éramos craques. Novamente fomos felizes, brincamos, passeamos até que eu, idoso, também adoeci. Cuidaram de mim, não mediram despesas nem esforços. Muitas foram as consultas, muitos foram os remédios, exames, cirurgias, curativos, horas de sono, até que os médicos acharam por bem abreviar meu sofrimento e assim o fizeram. Quando perguntado a um idoso o que ele achava da morte, ele disse: “diante de tudo que me foi tirado em vida a morte tem pouco para levar, pois o que me resta são lembranças e minhas lembranças ninguém leva”

Obrigado aos meus donos pelos anos de respeito, amizade, dedicação e principalmente boas lembranças.

Ass: Zé Bento (o oferecido que vos fala) e Zé Nicolau (o marrento que pediu que eu falasse)


(Já votou no melhor conto da Décima Rodada? A votação continua aberta em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=546698785402856)