O Corte
Outro dia voltei à velha casa, pois sou atualmente o delegado que atende àquela jurisdição. Fazia anos não entrava naquele quarto e, ao entrar, vi de novo minha imagem refletida no espelho da antiga penteadeira cujo tampo era entalhado numa placa inteiriça de mármore cinza e que sobrevivera incólume ao passar de todas aquelas décadas. Vendo meus cabelos grisalhos refletidos no espelho lembrei-me de minha imagem refletida ali na infância e de quando naquela penteadeira se encontrava tudo que se referisse a utensílios de maquiagem e higiene pessoal disponível na casa. Lembrei que invariavelmente se encontrava o suporte de louça que guardava o sabonete de eucalipto, a pasta de dentes da marca antiga, o pincel de barba já gasto, a cumbuca para o preparo da espuma de barbear, as navalhas com seus cabos de marfim amarelado, os pentes de osso, e as escovas. Dessas havia as de dentes, as de cabelo, a de unhas e a de roupas que frequentemente era esquecida ali numa saída mais apressada de um ou outro membro do casal então residente no aposento.
A luz da manhã entrava farta pelas janelas do quarto que se situava no pavimento superior do sobrado antigo. Havia no aposento duas janelas, uma logo à esquerda da penteadeira e outra localizada numa das paredes mais longas do quarto e que se conectava à primeira por meio de uma pilar de madeira maciça, talvez peroba, no lado esquerdo de quem estivesse olhando para o espelho. A disposição dos móveis e janelas era tal que se viam as copas das árvores e palmeiras pelas janelas ou refletidas no espelho de cristal que tinha formato elíptico e bordas biseladas. Aliás, esse espelho, desde que podia me lembrar, distorcia as imagens devido ao escoamento lento e inexorável do vidro em direção ao solo. E, quando criança, sempre achava graça ao ver o reflexo ondulado de minha cara, não só naquele espelho especificamente, como em todos os outros que havia na casa centenária. Distorções semelhantes também se viam nos vidros dos mosaicos de vidraças que formavam as bandeiras internas das janelas, criando tênues variações na intensidade na luz e formando faixas dégradés sobre o piso do ambiente.
A cama de casal, com sua estrutura de ferro batido e o estrado composto de molas e uma trama intricada de arames de aço em forma de losangos, suportava o pesado colchão de crina revestido por grossa camada de algodão sob um tecido externo grosseiro e resistente. Para mim aquela cama estava ali desde o início dos tempos ocupando o centro do quarto com sua cabeceira encostada na única parede cega do aposento. Na parede à direita da penteadeira, além da porta de duas bandeiras por onde se entrava no aposento e que se abria para o corredor que lhe dava acesso, havia ainda o guarda roupas. Ele era construído de madeira escura, provavelmente jacarandá ou mogno, alto e largo o bastante para comportar não só todo o enxoval do casal como também as roupas de cama de uso diário.
Aquele conjunto de objetos, móveis, paisagens e cores me remetiam aos anos de minha infância e aos antigos moradores daquele quarto, num tempo em que a vida trazia uma expectativa boa como aquela que se sente ao entrar no cinema da cidade natal para assistir uma matinê aos domingos. Quem diria que aquele local com suas recordações e imagens se confundiriam um dia com as do cenário de horror que ali se apresentava?
Sobre aquela mesma cama jazia, onde caíra de costas, meio atravessado com uma das pernas esticada e a outra dobrada se apoiando no piso, o corpo inerte de meu velho tio. Tinha os olhos abertos fixados nas tábuas verde-água do forro situado a quase quatro metros acima da cama. Duas perfurações escuras em seu peito marcavam o local dos tiros. Sob suas costas, uma espessa mancha de sangue empapara a colcha da cama mostrando que os projéteis haviam atravessado o tórax. Podia-se perceber que o homem fora apanhado de surpresa pelo intruso, mas que ainda assim tivera tempo de alcançar uma navalha na penteadeira e com ela fazer sua parte. Tanto que o corpo da invasora se encontrava ali no chão completando a cena do brutal desenlace.
A intrusa era uma moça morena, bonita e jovem ainda nos seus trinta e poucos anos. Trajava jeans e botas negras cujos canos altos embutiam os jeans até próximo dos joelhos. Usava ainda uma jaqueta de couro negro já um pouco gasta na altura dos cotovelos que delineava seu corpo bem feito. Pena que a enorme mancha de sangue ao seu redor se infiltrando nas tábuas do piso em nada iria valorizar sua silhueta nas fotos que os peritos começavam a tirar e que em breve estariam nos jornais. Podia-se notar pelo rastro de sangue no piso que, depois de golpeada, ela caíra e se arrastara com dificuldade até se encostar à parede ao lado da penteadeira onde lutou inutilmente para conter o sangue que jorrava a cada pulsar do coração. A mão que agora descansava inerte ao lado do corpo fora comprimida desesperadamente sobre o corte sem conseguir impedir que o sangue se esvaísse até a última gota pelo corte profundo em seu pescoço. O golpe lhe pegara por total infelicidade, pois conseguira atingir o velho à queima-roupa como havia planejado por anos e para o que havia se preparado com a escopeta de dois canos que deixara cair ao ser golpeada e que agora se encontrava ali encharcada em meio à poça de sangue. Tanto a arma como o treinamento para seu uso ela conseguira de um cliente em troca de um programa prolongado de fim de semana.
Ela só não podia prever que na iminência de ser mortalmente ferido, o velho conseguiria alcançar a navalha na penteadeira e desferir com ela um único golpe em direção ao seu rosto, atingindo-a de forma tão certeira. Foi uma fatalidade, pois a lâmina abriu um profundo corte na lateral direita de seu pescoço seccionando sua jugular e matando-a quase tão rápido quanto os ferimentos no peito de sua vítima.
Mas, afinal, porque nenhum dos presentes se surpreendia com toda aquela violência contra um octogenário num ambiente tão bucólico e com tão poucos bens a serem roubados? O motivo é que todos sabiam que aquela desgraça iria ocorrer, embora ninguém pudesse precisar onde e quando seria.
O fato é que Márcia, esse era o nome da moça, era a filha única de um casal de colonos que aportara por ali vinte e poucos anos antes quando ela contava com a idade de pouco mais de dez. Com a chegada da puberdade, meu tio Antônio, o fazendeiro morto, apesar de homem bem casado e com filhas da mesma idade que a de sua vítima, passou a abordá-la diariamente no caminho da escola. Ela percorria aquele trajeto desacompanhada porque seus pais eram estrategicamente afastados para trabalhar em algum outro ponto distante da fazenda pelo fazendeiro. Tanto insistiu o homem que um dia, cansado de tantas negativas, atacou-a num trecho mais deserto do caminho e estuprou-a a primeira vez daquela que para ela seria uma série infinita de vezes. Calada, ela logo aprendeu a se submeter à tortura quase diária em troca da garantia do emprego e da sobrevivência precária de seus pais na fazenda. A menina, como tantas outras em sua situação, preferiu não contar aos pais sobre o assédio que sofria.
Mas, se ela nunca falou com os pais, tampouco se conformou ou perdoou o fazendeiro pelo regime covarde de violência sexual a que foi submetida. E ela jurou vingar-se. Com o passar dos anos, o homem foi aos poucos se desinteressando e acabou por permitir sua fuga para a cidade próxima onde, para se sustentar, ela se dedicou de vez à prostituição. Por ser bonita e motivada pelo desejo de vingança, progrediu na atividade logo conseguindo juntar os recursos necessários para dar continuidade ao seu plano de vingança e de em seguida desaparecer para sempre da região. Seu pai, quando finalmente soube de tudo, inconformado com a sorte de sua filha, mergulhou na bebida morrendo menos de dois anos depois de ouvir sua historia. Isso só fez aumentar ainda mais o ódio de Márcia pelo fazendeiro.
Assim, não era segredo para os conhecidos, fossem eles clientes ou amigos, que a morte de sua mãe, já muito doente e fraca após a morte do marido, daria inicio à contagem regressiva para a execução do plano de liquidar o homem que destruíra sua vida e a de sua família. Tanto estava decidida a isso que no dia da tragédia se completava meros quinze dias da morte da mãe.
Eu me achava mergulhado nesses pensamentos e em outros mais práticos para redigir o relatório quando ouço passos no corredor. Era o Cardoso, um dos peritos, chegando para me informar que a moto da moça fora encontrada ao lado do alpendre de materiais de jardinagem que ficava localizado um pouco afastado da sede. A moto estacionada longe da casa explicava como a moça conseguira chegar até a casa sem ser ouvida pelo velho. Via-se pelos detalhes que iam surgindo que o plano dela havia sido minuciosamente estudado e que o fato do velho estar só na casa não fora mera coincidência. Márcia só precisou estudar as rotinas e atividades de cada morador e funcionário já que a disposição interna dos cômodos e seus acessos não eram problema para ela.
Com o caso praticamente encerrado e o relatório já rascunhado no bloco de notas, acendi um cigarro e sai dali pensando que fora mesmo uma pena não a ter convencido de abandonar seus planos naquele fim de semana que passáramos juntos entremeando seções de sexo com prática de tiro. No fundo, eu achava que devia ter insistido mais, que devia ter seguido sua rotina diária mais de perto, de forma que quando a visse estacionar ao lado do alpendre, pudesse chegar a tempo de lhe dizer que, se fosse ela, eu pegava a moto e não voltava mais. Teria assim evitado sua morte boba e talvez pudéssemos passar juntos novos e animados fins de semana.
(Imagem: http://img1.mlstatic.com/

Nenhum comentário:
Postar um comentário