domingo, 22 de setembro de 2013

Nona rodada, miniconto 3

Zé Maria


Então era verdade, ia mesmo ser substituída. Após ter enfrentado guerras, pestes, levantes, fazer a passagem sabe-se lá de quantos, centenas de milhares, milhões talvez, ia agora ser posta de lado. Com a notícia, surgira em mim uma mistura de ciúme, rancor, uma cólera difícil de administrar. Como ficar sem a sensação de ver um valentão diante de mim se acovardar e pedir clemência chorando feito criança? Ver o desespero do empresário que subornou e foi subornado a vida toda ao perceber que todo o dinheiro roubado não acrescentaria um minuto sequer na sua vida depois de estar diante de mim? Que virtudes terá a substituta? Rapidez? Eficiência? Frieza? Quer mais impiedosa do que fui com aquele político corrupto que desviava verba do SUS e estava com câncer na garganta? Ao invés de buscá-lo logo, enrolei meses, deixando-o penar bastante naquela cama de UTI e ainda trocava a morfina prescrita para ele por soro fisiológico pelo simples prazer de vê-lo desesperado dia e noite se contorcendo em seu leito de morte; ou como fui com o traficante que atuava na porta da escola quando foi baleado e ficou lá estrebuchando no meio do asfalto, ter pressa pra quê? Afinal, as drogas por ele fornecidas às crianças mataram mais lentamente e causaram muito mais dor e sofrimento a elas e as suas famílias do que aquela bala que levara no peito.

Já no caso de doentes terminais de boa índole, ninguém pode me acusar de fazer corpo mole. Foi sempre um serviço rápido e indolor, mas ali o caso é de misericórdia em que o prazer está em amenizar o sofrimento, abreviando sua penosa permanência entre os vivos. Na verdade, tenho que confessar estar meio cansada, cansada das madrugadas, das baladas com tantos jovens bêbados inconsequentes com seus carrões possantes e das vitimas causadas por eles. A começar por suas namoradas jovens, bonitas, que saem de casa lindas, arrumadas, maquiadas, produzidas para se divertir e acabam no meio da madrugada atiradas em uma rodovia escura como uma massa disforme no meio do asfalto. Fico arrasada sobretudo quando encontro no local os familiares com todo aquele sofrimento, toda aquela reza pedindo aos paramédicos que impeçam que eu faça o meu serviço. 

Agora! Que já saí daqui até rindo, isso já. Como quando o povo daquele bairro conseguiu flagrar o pedófilo que vinha há anos barbarizando as menininhas naquela vizinhança, confesso que fiquei de longe um bom tempo me divertindo, assistindo a toda aquela gente dar cabo dele na rua em que foi encurralado antes de tirar-lhe a vida. Também quando fui à mansão buscar o dono da usina canavieira que foi pego pelo pai da criança que eu buscara horas antes vitima de inanição, enquanto o pai se acabava de trabalhar nos campos, para garantir a vida nababesca do patrão. Confesso que esses eu busco e entrego com prazer para o Capiroto, Coisa Ruim, Lúcifer, Rabudo, Tinhoso ou seja lá como você conhece o Príncipe das Trevas. E ele como gosta! De longe já sente o cheiro de carne fresca e me espera no meio do caminho. Até eu, que faço isso há anos, tremo diante daquela figura nefasta com seus chifres, seu tridente e suas vestes negras como as que uso, mas com feições que fazem a minha parecer um rosto angelical. Ao me afastar, ainda sinto o calor, o aroma de churrasco de carne humana e ouço os gritos desesperados que vazam pela abertura do imenso portão do inferno por onde ele arrasta para as profundezas os seus novos hospedes e me apresso enquanto ressoam no ar suas gargalhadas de indescritíveis horripilância. 

Mas até aqui a gente se diverte. Ontem mesmo, passei por uma situação inusitada. Ao chegar a uma cena de assalto, encontrei o dono de uma moto já baleado sem gravidade no chão e o assaltante impiedoso sobre o veículo roubado se preparando para dar o tiro que justificaria minha vinda. Foi quando vi uma viatura da polícia dobrar a esquina a toda com seus ocupantes com meio corpo para fora das janelas e suas armas em punho fazendo mira no meliante que, desistindo do tiro fatal, acionou a moto e partiu para uma tentativa de fuga que certamente não iria muito longe. Quando me dirigi para a sua garupa, pois sabia o desfecho que aquilo teria, confesso que quase ri ao ouvir o jovem caído evitando me olhar diretamente dizer: se eu fosse ela, pegava essa moto e não voltava mais. 

Naquela noite entreguei o ladrão a Lúcifer sem saber que aquela seria a minha ultima entrega. 

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